A felicidade das damas. O consumo como modo de subjetivação

Pedro de Santi

Neste breve artigo, trabalho um aspecto específico e histórico com relação ao consumo entre as mulheres. Nossa ênfase aqui é ilustrar como o consumo passou a ser uma via de experimentação de desejo. A análise do romance O paraíso das damas (Au bonheur des dames), de Émile Zola será nosso fio condutor. O livro foi publicado em episódios num folhetim entre 1882 e 1883, numa trama repleta de observações agudas de ordem psicológica e social.

O processo através do qual as mulheres passaram a ocupar também uma posição de sujeito – ao final do século XIX- pode ser relacionado com o nascimento de uma modalidade de consumo: o nascimento das lojas de departamento.

Sempre que acompanhamos a história da subjetividade moderna – via filosofia ou história das ideias – podemos conceber que seus valores se estendem, ainda que irregularmente, a todas as pessoas. Mas noções como as de individualidade, liberdade, cidadania ou privacidade, essenciais no ideário moderno, parecem ter se aplicado prioritariamente aos homens. Mulheres e crianças tiveram seu acesso a estes valores conquistados de forma bem mais lenta. Talvez só desde meados do século XX tenhamos chegado a um ainda questionável equilíbrio no reconhecimento do direito à condição de sujeitos a todos, independente da questão do gênero.

Neste contexto, o consumo se configurou desde o século XIX como forma pessoal de se articular o desejo. O prazer e a felicidade das mulheres ganharam uma via de realização que, tudo leva a crer, foi original e muito significativa. Para a psicanálise o desejo não tem objetos naturais, ele encontra suas vias de expressão e descarga no ambiente em que a pessoa vive. Numa sociedade de consumo que começava a se insinuar, encontramos o casamento entre o desejo e o comércio.

Protagonista do romance, Denise chega a Paris e se vê uma loja com vitrines luminosas. Denise fica extasiada e chocada: e esse magazine encontrado bruscamente, esse edifício gigantesco para ela, enchia-lhe o coração, deixava-a paralisada, emocionada, curiosa, esquecida do resto. Na fachada que dava para a praça Gaillon, a alta porta de vidro alcançava o mezanino em meio a uma multiplicidade de ornamentos carregados de douraduras. Duas figuras alegóricas, duas mulheres sorrindo com os pescoços nus jogados para trás, portavam a inscrição: Paraíso das damas”. (Zola, 2007, p. 32.)

O efeito é traumático, paralisante, excitante e sedutor. Todo o discurso é permeado pela paixão. A cada hora entravam na loja mais pessoas que por todo um ano na loja em que trabalhara. Este movimento: “deixava-a atônita e a atraía; e havia em seu desejo de ali penetrar um vago temor que acabava por seduzi-la”.

A sedução era irresistível, a loja tinha um “brilho de fornalha”, “incendiava como um farol” a noite escura de Paris. E tudo isto a pôs a sonhar com um futuro ali. A falta de perspectiva de futuro que sofria então se transforma num desejo. Este desejo foi despertado pelo objeto que, ao mesmo tempo, deu forma aos anseios e esperanças de Denise.

O regente de toda a sedução do Paraíso era Mouret. Ele era o grande arquiteto, planejando as vitrines, decoração, ações promocionais, guerras de preço. A despeito de sua inteligência e pragmatismo, ele é apresentado como um apaixonado. Sua ação é determinada como a de um predador, sua ânsia é por domínio. Era uma revolução no mercado “feita com o sangue e carne da mulher”. Nos grandes dias de vendas promocionais as vitrines eram preparadas com exuberância e exagero, as prateleiras eram cheias e as peças coloridas sobrepostas: não se devia buscar a ordem, mas um excesso de estímulos que “cegassem” as mulheres. Tudo isto envolve um saber técnico sobre a mecânica do desejo feminino.

Mouret possui a mesma determinação e técnica dos sedutores libertinos do século XVIII, como Don Juan ou Casanova. Seu objeto é também conquistar o desejo da mulher e submetê-la. Mas, ao invés da realização sensual, ele almeja que elas consumam. “Domine a mulher e venderá o mundo!” é a máxima vigente. Tudo era feito para que a mulher se sentisse tendo vantagem e sendo satisfeita, como no prazer irresistível que sentiam quando elas acreditavam estar “levando vantagem” sobre o vendedor numa oferta de preço abaixo do custo.

Há inúmeras referências que sugerem uma transferência do lugar do prazer do campo da sensualidade para o do consumo. Trata-se mesmo de desejo que arde na carne, trata-se mesmo de um intenso prazer. Nele, distante do imaginário social corrente, a mulher não é objeto de desejo, mas sujeito. E sujeito de um prazer não recriminado moralmente: faz parte do mesmo imaginário ocidental e cristão o tabu relativo ao prazer sexual da mulher. No campo do consumo, a recriminação se restringe a casos de ostensivo excesso.

Mas aquela que supostamente ocupa o papel de objeto nesta cena parece se encontrar e encontrar um campo rico para fantasiar, desejar, se diferenciar das demais, ganhar valor social, de uma forma geral. Neste campo, o desejo da mulher floresce; das compras para o lar, ela passa às compras por vaidade e então a atividade das compras ganha valor em si: ela traz entretenimento, é prazerosa em si. O campo do consumo parece se transformar num cenário de existência social inédito e infinito para a expansão e afirmação da subjetividade feminina. A “rainha dócil” faz o que deseja e cumpre o que se espera dela, concomitantemente. Parece um casamento feliz o que se estabelece entre ela e o mercado, através do consumo.

É claro que nem toda mulher encontra no prazer e realização no campo do consumo. É igualmente claro que ao longo do século XX a mulher passou a encontrar espaços de realização pessoal também no campo do trabalho. Também não há dúvidas de que muitos homens encontram prazer e realização nesta atividade. O nosso ponto é mostrar que desde o final do século XIX, o consumo nasceu e se ampliou como recurso de acesso aos valores modernos para a mulher.

Comentários estão desabilitados para essa publicação