A escola fora do tempo e do espaço

Por César Veronese
CPV Vestibulares

Recentemente o governo do Estado de São Paulo aprovou a diminuição da carga horária de aulas de Geografia e História nos três primeiros anos do Ensino Fundamental. Cogita-se sobre a eliminação dessas disciplinas nas referidas séries. O argumento é que os alunos não sabem escrever e raciocinar, o que seria resolvido com o aumento de aulas de Português e Matemática.
Por sorte, pude realizar o Fundamental, quando este ainda se chamava ginasial, numa geração mais recuada, e assim pude viver estórias com História e histórias e, sobretudo, muitas geografias. Eis uma delas. Para ser mais explícito, o maior trauma da minha infância e pré-adolescência.
Se fosse uma novela, poderia chamar-se “O Fatídico Encontro do Número Onze com o Ferro de Passar Roupa”. Era o início do ano letivo de 1982 e eu delirava, há alguns dias, desde que ganhara o livro de geografia do que hoje chamamos terceiro ano do Fundamental. Embora fosse parte do material didático, para mim fora um presente, seguido de uma descoberta instantânea, e cujo encanto até hoje permanece vivo.
Sim, numa ilustração de página dupla, as páginas 10 e 11, estava o mapa-múndi, que até então me era desconhecido. O verde-União-Soviética, o amarelo-Tibete e o rosa-Estados Unidos se impunham e me faziam imaginar estradas, estórias e personagens. Mas a graça era decifrar os países-fada, alguns dos quais, para acentuar o mistério, coincidentemente estavam localizados na confluência das páginas: Luxemburgo, Liechtenstein, Andorra.
A amizade com o mapa era tão estreita que em poucos dias as páginas estavam completamente amarfanhadas. A operação restauração convocou – ideia genial – o ferro de passar roupa. Em segundos o monstro imprimiu sua pata de Átila sobre a beleza da Austrália e o azul dos mares do sul. Na parte inferior da página 11.
O trauma do mapa incendiado só foi superado pelas canções. No ano seguinte eu contornava, ao som de “Aquarela”, de Toquinho, “a imensa curva norte sul, com ela viajando Havaí, Pequim ou Istambul…” E um pouco depois avançava pelos espaços siderais, ao som de Rita Lee, tentando “roubar os anéis de Saturno”.
Cantando e viajando com os mapas terrestre e sideral, cheguei à Universidade acompanhado de Caetano Veloso e “a chuva do Saara lançando a areia do deserto sobre os automóveis de Roma”. Quando finalmente cheguei a Roma, as ruas tinham cheiro de deserto, e quando fui à Turquia, apesar da neve, o país tinha a aura do vermelho do mapa do livro de geografia.
Seguindo a atual política de ensino do Estado mais rico do país, traumas e lembranças semelhantes deixarão de povoar a imaginação dos alunos hoje matriculados nos três primeiros anos do Ensino Fundamental. Nem descobertas e recordações relacionadas à História. Aluno paulista não sabe escrever nem raciocinar. E escrita e raciocínio aprende-se em aulas de Português e Matemática. Geografia e História são estórias que se aprende por aí, talvez na chamada escola da vida…
E como a gente vai dar A VOLTA AO MUNDO EM 80 DIAS com o Júlio Verne ou se localizar na GEOGRAFIA DA DONA BENTA, do nosso Monteiro Lobato? E quem vai entender agora a “Canção das Duas Índias”, do Manuel Bandeira? E aquele voo do albatroz, cantado por Pablo Neruda, que decolou da Nova Zelândia para vir morrer na costa da Isla Negra, no Chile?
E se uma criança ouvir a música da Rita Lee, provavelmente irá imaginar que Saturno é um cara descolado com muitos anéis e piercings e talvez com o corpo bastante tatuado! E se ela ouvir o Ney Matogrosso cantando “Napoleão com os seus cem soldados, um morreu de costas e o outro morreu de frente”, talvez conclua que a música alude a uma brincadeira de paredão.
Então vamos ensinar às nossas crianças e adolescentes apenas Português e Matemática. Como se todas as histórias, narrativas e poemas acontecessem fora do tempo e do espaço, e como se os grandes matemáticos não tivessem feito muitas de suas principais descobertas justamente por terem uma curiosidade que os levou a viajar e partilhar experiências com pensadores de outros países ou continentes.
Falemos mais de perto do Português. O professor do Ensino Fundamental costuma trabalhar, simultaneamente, a gramática, a literatura e a produção de textos. O conhecimento de um livro de literatura exige não só a leitura do texto em si, mas também de crítica e teoria literária. Essa necessidade exige, por sua vez, um tempo maior para a preparação da aula.
Agora consideremos os dados sobre leitura no Brasil. Se a média entre cidadãos comuns é de 1,7 livro por ano, entre professores de Português ela não é muito diferente e estaciona no número 3. Isso mesmo, esse número pífio é a média de livros lidos por professores de Língua Portuguesa no Brasil a cada ano.
Juntando-se os dados, não é muito difícil deduzir que as aulas de Português serão preenchidas, como sempre aconteceu e continua a acontecer na maioria das escolas, com atividades como a conjugação do verbo apropinquar, a classificação da oração subordinada substantiva objetiva indireta ou aulas-charadas: berin(g ou j?)ela, Pikachu ou Picachu? Incompetência fica melhor com ou sem acento circunflexo? E a hipocrisia, é maior com ou sem o agá?
Mas os exemplos do fracasso dessas supressões, como nos Estados Unidos, de nada servem. Como o da substituição do caderno pelo computador. As pesquisas ilustram e repetem, uma após outra, os mesmíssimos dados sobre idosos e crianças submetidos a audições por métodos midiáticos ultramodernos. Os velhos absorvem apenas um certo número de informações, enquanto as crianças assimilam muito mais. Passado um tempo, aqueles lembram perfeitamente o que tinham assimilado, ao passo que estas esqueceram quase tudo.
Durante o regime militar, a escola brasileira eliminou o estudo de Artes, Música e Filosofia. Em seus lugares foram colocadas a Educação Artística (com atividades como colagem de botões sobre o papel) e a Educação Moral e Cívica (um engodo voltado para o ensino dos símbolos da pátria – como se fosse necessária uma disciplina para aprender duas ou três noções oficiais tronchas!).Agora deseja-se suprimir a Geografia e a História.
Por essas e outras explica-se o sucesso de Michel Teló e Paulo Coelho, a audiência de programas como Big Brother e Fazenda, a tiragem de 3 milhões de um disco da Xuxa ou do Padre Marcelo contra 4 mil do último cd de Chico Buarque, bem como os titulares de muitas cadeiras na Câmara dos Vereadores ou do Congresso Nacional

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