A destruição como origem do devir

Pedro de Santi

Este é o título de um importante artigo de uma das primeiras psicanalistas, Sabine Spielrein. Escrevo este texto antes do segundo turno da eleição presidencial, sob a sobrecarga de ódio quase alucinatório que a precede. Escrevi alguns textos sobre isto para me desintoxicar do impacto que senti. Tenho medo deste ódio como muitos eleitores tomados pelo clima tem medo das consequências da vitória do adversário. Busco inspiração no artigo de Spielrein, para me conciliar e distanciar relativamente com relação à destrutividade do momento.

Talvez o leitor que não seja da área tenha uma referência sobre a autora como personagem nos filmes “Jornada da alma” (Roberto Faenza, 2003) e “Um método perigoso” (David Cronenberg, 2011). Mas, nestes dois filmes, ela comparece sobretudo como uma paciente especialmente difícil de Jung, com quem acabou por ter um caso. No segundo filme, ao menos, ela é mostrada num embate de ideias com Freud, de igual para igual. Esta imagem é mais justa e nos conduz ao título deste texto.

Passemos de Cronenberg a Cromberg.

Acaba de ser lançado o livro “Sabine Spielrein. Uma pioneira da psicanálise” (editora Livros da Matriz), organizado por uma amiga e colega na especialização em Teoria Psicanalítica na Cogeae PUC-SP, Renata Cromberg. O livro é cativante e conjuga o projeto de edição das obras completas de Spielrein (este é o primeiro de um projeto de 3 volumes) e traz um rico material acadêmico e crítico, derivado do doutorado de Cromberg. A primeira parte é dedicada a uma apresentação da vida de Spielrein: trata-se de uma vida rica e épica. Além do convívio e reconhecimento de Freud e Jung ela foi, entre outras coisas, a introdutora da psicanálise na Rússia, analista de Jean Piaget e teve uma morte trágica, executada ao lado da filha pelos nazistas, que ocuparam a cidade em que vivia.

A linguagem do texto é fortemente metafísica; Spielrein parece mesmo atribuir uma realidade transcendente ao que diz, sem o tratamento mais metafórico ou heurístico com o qual estamos mais acostumáramos em teoria psicanalítica.

Como o título do texto já adianta, ela trabalha a ideia de que os atos e momentos criativos se dão no encontro e destruição do que pré-existia. A referência é fortemente sexual e reprodutiva:  a criação de uma nova vida se dá no processamento e destruição de células germinativas dos pais. O pressuposto aqui é uma concepção de sexualidade mais próxima de Shopenhauer. O desejo sexual que se apresenta como busca por prazer individual seria, no fundo, um impulso para a preservação da espécie. Em Freud, isto não faria sentido, uma vez que para ele, o impulso que busca prazer apenas contingentemente se liga atos que conduzem à reprodução; mas o prazer é e pode ser encontrado em cenas e objetos em nada compatíveis com ela. Voltando ao pensamento de Spielrein, nossos corpos perecerão, mas a vida segue nos novos corpos gerados. O desejo nos lança então em direção do encontro do objeto, do prazer e da auto-destruição. Desta última, advirá a criação e o novo.

Mas contra este processo ergue-se o Eu e seu próprio impulso de auto-preservação. Ante a iminência da destruição, o Eu se rebela e procura interromper o fluxo do devir: esta é então a neurose. A aversão à entrega sexual, a repressão dos impulsos pelo temor da morte.

Muitos vêem neste artigo publicado em 1912 o ponto germinal do conceito de pulsão de morte em Freud, apresentado por ele apenas em 1920. De toda a forma, a concepção já é condizente com a formulação de que somos movidos por um princípio do prazer, e que este último seja definido como diminuição de tensão. Se buscamos por prazer e ele é diminuição de tensão, o prazer absoluto deve coincidir com a tensão zero,  a morte. Esta ligação entre a morte realização plena do sexual vai além de Freud, que incluía a pulsão sexual na pulsão de vida. Encontramos a relação feita por ela em Jean Laplanche, em “Vida e morte e psicanálise”.

Entregar-se ao prazer teria a conotação de se despojar das garantias da própria identidade. Mas isto só teria o sentido de morte para aquela mesma identidade. De uma perspectiva maior da vida, estes ciclos seriam a condição da renovação da vida e confiança no devir. Nas belas palavras de Renata Cromberg:

“Nesse movimento, o que é vivido como morte, só o é para o Eu. O devir e a transformação são vividos como morte. O Eu que desaparece na criação artística reaparece como Outro. Eu é Outro. Novo e mais belo, porém, não mais o mesmo” (p. 319).

Talvez um eventual leitor perceba minha esperança em poder ler os tempos atuais desta perspectiva. Outra possibilidade é que estejamos experimentando um gosto de Faixa de Gaza, onde cada ferida infligida por um retroalimenta o ódio do outro num impasse que parece impossível de se resolver e só resulta em mais mortes. É o como o que ocorre na esquizofrenia, da perspectiva de Sabine Spielrein.

Escrevendo no sábado de manhã, temo que nesta segunda haja clima de deboche de um lado e acusações de golpe do outro. Mas espero que do sentimento de morte dos que tiveram seu candidato derrotado e de todos os que se entristeceram como eu pelo ambiente tão hostil resulte numa recomposição revitalizada do devir. A vida segue.

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