Rússia: da URSS a Putin

Por Cézar Veronese
Professor do CPV Vestibulares

Dziga Vertov consagrou-se como um dos primeiros documentaristas do cinema, nas décadas de 1910 e 1920. Produziu dezenas de filmes de propaganda política sobre a recém vitoriosa Revolução de Outubro. O triunfo comunista, o Estado forte, louvores ao ideólogo e líder revolucionário Vladimir Ilitch Lênin, a exaltação do trabalho coletivo, os planos quinquenais e a família constituíram o repertório desses filmes.
Posteriormente, com o desdobrar dos acontecimentos, sobretudo após os horrores perpetrados por Stálin, esses filmes foram rechaçados por boa parte dos críticos, acusando-os de serem excessivamente oficiais e propagandísticos. Discussões cinematográficas à parte, o certo é que eles podem ser vistos hoje como um precioso registro de um dos momentos mais importantes da história do século XX. Oito deles podem ser assistidos entre quarta-feira (10.04) e domingo (14.04), no Festival Internacional de Documentários É TUDO VERDADE que está acontecendo em São Paulo.
A propaganda do regime não foi, no entanto, suficiente para mantê-lo. Enquanto o Congresso Anual do Partido Comunista insistia em proclamar a grandeza da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o cancro interno ia roendo o país. E quando o gigante acordou de sua utopia comunista era um país esfacelado. Mikhail Gorbatchev, no início dos anos 1990, começa as reformas, com a Perestroika e depois com a Glasnost. Em seguida renuncia e a União Soviética fragmenta-se em 15 repúblicas, algumas em estado de pobreza total.
Nesses mais de vinte anos as 15 repúblicas tornaram-se palco de transformações econômicas, políticas e sociais radicais. A Rússia, a mais importante das ex-repúblicas que integravam a URSS, é hoje o país com o maior número de bilionários proporcionalmente à sua população. É também um dos países mais corruptos do mundo, dominado por uma rede mafiosa que articula empresários, autoridades e policiais.
Várias ds outras repúblicas tornaram-se, a partir de 1993, palco de conflitos étnicos e separatistas, como a Geórgia e a Chechênia. Denúncias recentes acusam um gigantesco esquema de corrupção no Quirquistão, no Azerbaidjão e no Turcomenistão. A família dos governantes de cada um desses países controla praticamente todos os grandes negócios e os dissidentes políticos são torturados e exterminados. Fontes diversas, como noticiou recentemente O ESTADO DE SÃO PAULO, confirmam torturas de requinte nazista, como a queima de pessoas vivas em caldeirões de água fervente.
Vozes públicas que se levantam contra a política oficial de Putin, como a da jornalista Anna Politkovskaya, são silenciadas a tiros. A ex-URSS tornou-se um conjunto de novos-velhos países sem norte. Os abusos políticos dessa nova realidade estão retratados nos extraordinários documentários de Marina Goldovskaya e de Sergei Balabanov.
E o É TUDO VERDADE traz um filme que complementa esses retratos. Trata-se de NASCIDO NA URSS – GERAÇÃO DE 28. Com três horas e meia de duração, o filme, dirigido por Sergei Miroshnichenko, foi realizado ao longo de 21 anos. Ele escolhe um grupo de 20 crianças, em 1990, todas com 7 anos de idade. E irá acompanhá-las, filmando-as aos 14, aos 21 e aos 28 anos. Suas vidas acompanham as transformações da Rússia, da Geórgia e da Lituânia, entre outras ex-repúblicas que integravam a URSS.
Dima, por exemplo, aos sete anos era um menino que sonhava ir à lua. Aos 28 ele ganha a vida como motorista do metrô de Moscou. Nasty, cujo sonho de criança era ver a URSS prosperar, agora, aos 28, se pergunta o que é a pátria depois dos conflitos étnicos e separatistas. Rita, vivendo na Sibéria, constata que mesmo nos lugares mais recônditos da Rússia, o sonho de coletividade foi substituído pelo individualismo e pelo consumo. Enfim, essas são apenas três breves referências de vinte histórias que se revelam em detalhes no documentário.
O valor e a importância do filme estão na oportunidade de ouvirmos as vozes dos próprios cidadãos. São testemunhos pessoais capazes de ilustrar, pelas diferenças, a realidade de milhões de vidas submetidas às mesmas transformações. No arco desenhado entre a propaganda pós-revolucionária dos filmes de Vertov e o esfacelamento da ex-superpotência, mostrado neste NASCIDO NA URSS, evidencia-se a fragilidade dos regimes, o desvirtuamento das utopias, a perda das oportunidades econômicas e o sofrimento de um povo.
NASCIDO NA URSS – GERAÇÃO 28 terá sua segunda e última sessão nesta quinta-feira, às 15h00, no Cine Livraria Cultura. A entrada é franca. Os filmes de Dziga Vertov serão exibidos no Centro Cultural Banco do Brasil e na Cinemateca Brasileira entre quarta e domingo desta semana, também com entrada franca.

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