Sob direção da AT&T, HBO manterá o trono?

“Bem-vindos ao começo do fim”, ecoou a voz do narrador no Radio City Music Hall, em Nova York, enquanto um organista tocava ao vivo a música-tema da série “Game of Thrones”.
Entre executivos de mídia e socialites reunidos este mês para celebrar a temporada final da série mais popular da história da televisão estava Richard Plepler, o chefe da HBO que transformou o enfraquecido canal de TV a cabo na potência que deu início a uma era de ouro na televisão.
A temporada final de “Game of Thrones” despertou uma obsessão mundial
raramente vista numa era em que o “streaming” fragmentou as escolhas. O frenesi valida a aposta feita por Plepler há mais de uma década, quando ele aprovou a produção do episódio-piloto mais caro da história da HBO, sob uma ideia “fora da caixa”: um programa sobre dragões, um exército de mortos e casos amorosos incestuosos.
Mas por trás do esplendor típico de uma estreia da HBO, a atmosfera evocava o fim dos tempos. A noite marcou a última aparição de Plepler como líder da rede. No fim de fevereiro, ele deixou a companhia abruptamente, após meses de desavenças com a nova dona da HBO, a AT&T, na primeira sacudida desde que a operadora de telecomunicações comprou a Time Warner, dona da rede HBO.
Quase três anos depois de apostar US$ 80 bilhões que seu futuro estava em Hollywood – um lance que enfrentou incontáveis batalhas regulatórias e só foi concluído em junho do ano passado -, a AT&T finalmente está prosseguindo com seus planos. O negócio é parte de uma onda de consolidação, à medida que os grupos de mídia buscam formas de competir com a Netflix, o serviço de “streaming” que transformou a maneira como o conteúdo é criado e consumido.
Também na plateia da “première” estavam John Stankey – há 30 anos na AT&T, na qual hoje comanda a reformulada WarnerMedia – e Bob Greenblatt, forasteiro que o grupo contratou para estabelecer um serviço concorrente de “streaming”.
Entrevistas com uma dezena de atuais e ex-funcionários da WarnerMedia e da AT&T revelam uma troca de guarda turbulenta e, por vezes, hostil. Esses executivos, muitos dos quais falaram sob a condição de anonimato, descreveram um choque cultural entre o grupo de telecomunicações do Texas e a companhia de mídia de Nova York.
Na pré-estreia, os criadores de “Game of Thrones” não fizeram segredo de sua fidelidade, com discursos nostálgicos em seu “grand finale”. “O coração de nossa série está nas mãos de um homem e esse homem é Richard Plepler”, disse o cocriador David Benioff, enquanto a plateia urrava. Eles não mencionaram a AT&T.
O cabo de guerra sobre a identidade da HBO levanta questões centrais sobre o mercado da mídia, e se uma empresa segmentada como a HBO pode prosperar em um ambiente dominado por serviços de “streaming” com os bolsos recheados como a Netflix, que estão inundando o mercado com novos programas.
A Time Warner dava autonomia à HBO, contanto que a rede atingisse as metas de lucro. Mas a AT&T adotou uma postura mais rígida, levando Stankey a advertir os funcionários da HBO, no verão americano de 2018, de que a rede precisava produzir mais conteúdo. A exigência provocou irritação na HBO, que sempre valorizou sua estratégia de produzir programação inovadora e de alta qualidade.
“A ideia é de que você pode testar esses dados e prever que as pessoas vão gostar de programas com dragões? Dez anos atrás, as pessoas não gostavam de programas com dragões”, diz um executivo graduado da HBO que trabalhou de perto com Plepler. “Se você vai criar uma cultura, não pode se fiar em dados, que são históricos. Você vai apenas acabar fazendo coisas que já existem.”
O início turbulento da AT&T com a Time Warner também tem levantado dúvidas sobre o valor das megafusões. Uma das consequências de um negócio desse porte é que a AT&T está, agora, preocupada em reduzir sua dívida de US$ 164 bilhões. Neste mês, a companhia vendeu a sede da WarnerMedia por US$ 2,2 bilhões e sua participação no serviço de “streaming” Hulu, por US$ 1,4 bilhão. A ênfase em reduzir o endividamento “pode estar ocorrendo à custa de negócios de longo prazo”, afirma Jonathan Chaplin, analista da empresa de pesquisa New Street Research.
Jamyn Edis, que foi vice-presidente de inovação da HBO entre 2007 e 2012, diz acreditar que a AT&T “vai lidar com uma organização como a HBO da mesma maneira que o corpo humano processa um cálculo renal. Será uma bagunça lenta e dolorosa”.
No mês passado, a AT&T consolidou seus negócios de mídia, que vinham, em grande parte, funcionando como feudos independentes. A decisão foi saudada por alguns analistas como necessária para centralizar a tomada de decisões. Mas a reorganização levou à saída de Plepler e outros altos executivos. “Você precisa pisar leve, caso contrário vai provocar um êxodo de talentos que destruirá o ativo que você comprou”, afirma Craig Moffett, analista de mídia da consultoria MoffettNathanson.
Plepler é a epítome de como Hollywood costumava funcionar – promovendo festas lendárias e se misturando aos talentos, com mais confiança nos instintos que na análise dos dados. Stankey, que tem ferido suscetibilidades durante a transição por causa de seu comportamento pragmático, trabalhou na área de telecomunicações durante toda sua carreira, a maior parte do tempo no Texas. Plepler é um democrata de longa data; Stankey doou recursos, no ano passado, para a campanha da senadora republicana Marsha Blackburn, aliada próxima do presidente Donald Trump e contrária ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
“A AT&T tem uma cultura autoritária”, afirma um executivo sênior da HBO em Nova York. “Você não pode questionar ou contrariar um superior em uma reunião, o que é totalmente antiético para a HBO, que prosperou com base na colaboração e na diferença de opiniões.”
Time Warner dava autonomia à HBO, enquanto AT&T tem demonstrado postura mais rígida
Após quase três décadas na HBO, Plepler percebeu que não teria mais a mesma independência sob os chefes da AT&T, segundo afirmam duas pessoas próximas ao executivo. “Ele inicialmente adotou a postura do ‘esperar para ver’, mas com o passar do tempo sua expectativa se deteriorou. Ele ia às reuniões e voltava dizendo: ‘Bem, você sabe, eles não são comunicativos'”, afirma uma pessoa familiarizada com a decisão de Plepler.
Outra fonte de frustração para muitos funcionários é que os executivos da cúpula da AT&T pareciam focados nos Estados Unidos, à custa dos negócios internacionais. Segundo cinco atuais e ex-executivos da AT&T e da WarnerMedia, a companhia de telecomunicações aventou internamente a possibilidade de vender a HBO Europe, uma operação de “streaming” independente que opera em países do Leste Europeu, da Escandinávia e na Espanha.
A ideia, que Stankey diz ser infundada, irritou muitos na HBO, além de executivos da AT&T que trabalham com negócios internacionais. “Isso provavelmente não vai acontecer depois de o ‘Financial Times’ publicar a história de que eles consideravam a venda [da HBO Europe], mas o fato de isso ter sido discutido internamente como opção é ilógico e estúpido”, afirma um executivo da HBO.
Alguns banqueiros também apontam para o que dizem ser um histórico irregular da AT&T na condução das companhias que adquire, especialmente no caso da DirecTV. Quando comprou a operadora de TV por satélite por US$ 48,5 bilhões em 2014, o diretor-presidente da AT&T, Randall Stephenson, classificou o negócio de uma “oportunidade única que vai redefinir a indústria de entretenimento em vídeo”. Mas a DirecTV e sua subsidiária U-Verse tem perdido milhões de assinantes desde a fusão.
“Os negócios de fusão e aquisições na área de mídia são bastante irregulares”, afirma Jonathan Knee, professor da Escola de Negócios da Universidade Columbia. “É difícil dizer qual é a fonte do fracasso. Cultura [empresarial] tem grande peso, assim como execução e estratégia. Tudo isso – cultura, execução e estratégia – frequentemente são interdependentes. Assim, você pode acertar na cultura e na execução, mas o negócio não dar certo porque errou na estratégia”, acrescenta Knee. A observação, frisa o professor, não se refere especificamente aos acordos da AT&T.
Para algumas pessoas, é muito fácil acusar a AT&T de administrar mal a DirecTV ou prejudicar a HBO. “A HBO pode ter sido incrivelmente bem-sucedida na produção de conteúdo de qualidade, mas seu modelo de negócio é falho. Além do que, não devemos nos esquecer de que a empresa se atrapalhou toda com o ‘streaming'”, afirma um analista de mídia e telecomunicações.
Um banqueiro acrescenta: “A HBO e seus executivos estavam pagando a si mesmos pacotes de remuneração astronômicos e vivendo em um mundo que não existe mais”.
Alguns atuais e ex-executivos da HBO descrevem uma cultura de “country club” na rede de TV. “Você tem pessoas que estão lá há muito tempo e não têm nenhum incentivo para modificar as coisas. A HBO foi uma galinha dos ovos de ouro para a Time Warner”, afirma Jamyn Edis, que atualmente é professor de novas mídias da Escola de Negócios da Universidade de Nova York.
Uma frustração dos funcionários da rede de TV é a concentração do foco nos EUA, à custa de negócios internacionais
Um alto executivo próximo de Plepler, no entanto, comenta: “Você pode reclamar que Plepler é bronzeado em excesso e gasta dinheiro demais com seu iate, mas ele conhece muito bem o negócio. Quando fazíamos uma festa, tinha que ser a melhor festa. Por quê? Para que as pessoas dissessem que a HBO faz as melhores festas. Não basta fazer a terceira melhor festa”. A reputação de qualidade da HBO tem valido a pena tanto do ponto de vista financeiro quanto da crítica. A empresa conquistou incontáveis prêmios Emmy por sua ousadia criativa, ao mesmo tempo em que elevou suas receitas anuais para cerca de US$ 6 bilhões e manteve margem superior a 30% no lucro antes dos juros, impostos, depreciação e amortização.
Os funcionários da HBO depositam as esperanças em Casey Bloys, que era próximo de Plepler e permanece no comando da programação sob o regime de Stankey.
Até agora, grande parte da consolidação na WarnerMedia tem ocorrido em funções relacionadas a finanças e tecnologia, questões legais e recursos humanos, áreas nas quais a HBO será combinada a outras redes de TV a cabo como TNT e TBS, que não têm o mesmo histórico de sucessos.
Bob Greenblatt, que é ex-presidente do conselho de administração da NBCUniversal e hoje se reporta a Stankey, foi encarregado de supervisionar a futura plataforma de “streaming”. Até agora ele é respeitado na HBO. “Não é segredo que as pessoas estão no limite”, afirma um executivo de longa data da HBO. No entanto, “não parece que Bob esteja agitando as coisas”. Em uma festa da mais recente temporada da série “Veep”, Greenblatt conheceu o comediante John Oliver, que frequentemente critica a AT&T em seu programa semanal na HBO. Greenblatt disse a Oliver: “Eu adoro aquilo”.
A AT&T está entrando no território da Netflix ao mesmo tempo que Disney, Apple e Comcast. Investidores e analistas elogiaram efusivamente o esforço da Disney, mas estão menos confiantes sobre a AT&T. Além dos desafios da reestruturação da WarnerMedia, alguns analistas questionam se um produto como a HBO pode ser empacotado com sucesso em um serviço do tipo Netflix.
“A HBO usa a analogia ‘Netflix é Walmart e HBO é Tiffany’. Mas há uma questão muito real que é se uma estratégia da Tiffany tem alguma chance de sucesso como serviço direto ao consumidor “, diz Moffett. “Um serviço que é construído em torno de programas de alta qualidade, como ‘Game of Thrones’, pode ser imensamente bem-sucedido em conquistar assinantes. Mas a verdadeira questão é se você conseguirá mantê-los depois que a série terminar.”
Na semana passada, a AT&T informou que vai detalhar os planos de sua plataforma de “streaming” em setembro ou outubro. Haverá um lançamento experimental no outono americano, com previsão de lançamento mais amplo no primeiro semestre de 2020, de acordo com pessoas informadas sobre os planos. A HBO continuará a ser oferecida como assinatura autônoma, mas a empresa considera também dar aos assinantes da HBO acesso a uma plataforma on-line com programação familiar e de adolescentes fora da HBO, disseram essas fontes. Por um custo extra, os assinantes poderiam adicionar o serviço de “streaming” completo que ofereceria outros conteúdos da WarnerMedia, como a série “Friends”.
De modo semelhante ao da Netflix, o serviço de “streaming” da WarnerMedia inicialmente não vai exibir anúncios, mas fontes afirmam que há planos de oferecer, no futuro, outra versão com propaganda. Essas pessoas alertam que nada foi finalizado, faltando vários meses para a revelação ao público.
Na semana passada, Stephenson minimizou a ameaça da Disney. “Estamos muito, muito otimistas e o anúncio da Disney não nos deu nada além de mais otimismo em termos do que achamos que podemos trazer ao mercado”, disse o chefe da AT&T a investidores.
Algumas semanas antes, em meio à espetacular celebração de “Game of Thrones”, a HBO promoveu o que alguns temem que possa ser sua última festa descontraída por algum tempo. Stankey e outros executivos da AT&T foram para o Ziegfeld Ballroom, um antigo cinema, para uma comemoração mais reservada na qual estrelas como Kit Harington e Emilia Clarke tomaram cerveja com tema da série. Plepler, no entanto, preferiu ir para casa.

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