Consumidor fiel é bênção e maldição para a Apple

Mais da metade do total de iPhones vendidos em todos os tempos – 900 milhões ou mais – ainda estão sendo usados hoje, informou a Apple na noite de terça-feira.
O número corrobora a maior esperança da empresa de uma volta ao crescimento da receita: a de que mais de 900 milhões de clientes fiéis continuarão a gastar em aplicativos, assinaturas de serviços e acessórios, antes de acabar comprando mais um iPhone.
Mas a estatística também põe a nu o maior desafio da Apple – o de que as
pessoas gostem tanto de usar o iPhone que já possuem que não queiram comprar um novo.
Tim Cook, o executivo-chefe da Apple, reconheceu que os clientes estão fazendo um intervalo maior entre as novas compras de smartphones do que o que faziam nos primeiros tempos do iPhone. Isso contribuiu para uma queda de 5% na receita da Apple em seu primeiro trimestre fiscal, encerrado em dezembro.
“Nós efetivamente projetamos nossos produtos para que durem o mais possível”, disse Cook em teleconferência com analistas na noite de terça-feira. Isso contribui para o alto nível de satisfação e de fidelidade do cliente da Apple, acrescentou, apesar de estar dificultando para a tarefa de alcançar as metas trimestrais de Wall Street.
“O ciclo médio [de troca por um modelo mais novo] se ampliou, não há dúvida quanto a isso”, reconheceu Cook. “Para onde vai no futuro, não sei, mas estou convencido de que fazer um ótimo produto, de alta qualidade, é a melhor coisa para o cliente.”
Cook tem de convencer os investidores disso caso queira que Wall Street acredite que o pico do iPhone não significa necessariamente o pico da Apple.
Os resultados apresentados na noite de terça-feira confirmaram que a queda nas vendas do iPhone, que se revela especialmente aguda na China, deverá continuar por mais alguns meses, e que as vendas deverão cair nada menos que 10%, para US$ 55 bilhões a US$ 59 bilhões no trimestre fiscal encerrado em março.
Mas o preço das ações da Apple começou o pregão de ontem mais elevado do que estava no início do ano, antes da advertência de Cook, em 2 de janeiro, de que sua receita trimestral ficaria aquém da meta. O papel encerrou o dia em alta de 6,8%, a US$ 165,25.
Analistas do HSBC atribuíram a recuperação da ação a uma combinação entre a tranquilização dos investidores decorrente de a Apple ter revelado que há mais de 900 milhões de usuários do iPhone – o que significa uma alta de 8% no ano passado – e as margens de lucro bruto superiores às previstas, de 63%, obtidas por sua divisão de serviços.
Mas analistas do banco Jefferies disseram que, embora a margem bruta de serviços da Apple seja “sólida”, “não é suficiente para neutralizar os efeitos da corrosão das margens da divisão de hardware”. Em decorrência disso o Jefferies reduziu sua previsão de receita para 2019 em US$ 8 bilhões, para US$ 251 bilhões, o que representaria uma queda de 5% em relação ao ano passado.
Alguns investidores que apostavam que os preços das ações vão cair ainda mais podem estar cobrindo suas posições de vendas a descoberto após a projeção para o trimestre que se encerrará em março não ter sido tão ruim quanto Wall Street temia – embora seja inferior ao consenso publicado pelos analistas.
Mesmo com a altas no preço das ações ontem, que elevaram o valor de mercado da Apple em dezenas de bilhões de dólares da noite para o dia, a antiga empresa mais valiosa do mundo ainda está distante de suas glórias passadas.
Os papéis da Apple se recuperaram das perdas de janeiro, mas seu valor de mercado atual, de US$ 781,6 bilhões, continua bem abaixo da alta recorde de 1 trilhão de dólar alcançada em agosto passado.
“A Apple não parece especialmente cara nesse nível, mas as condições atuais das transações, principalmente nos mercados emergentes, parecem continuar sendo difíceis”, escreveram analistas do HSBC em relatório a clientes.
Cook reconheceu na terça-feira à noite que “o preço é um dos fatores” que restringem as vendas nos mercados emergentes. Ao longo de janeiro, a Apple foi obrigada a corrigir sua estratégia em alguns desses mercados, onde o preço local de um iPhone tinha sido puxado para cima pela alta do dólar. A companhia “essencialmente absorveu parte ou toda a variação da moeda estrangeira no comparativo com o ano passado”, disse ele.
Apesar das perspectivas desanimadoras, Cook manteve um tom de confiança, de modo geral, na teleconferência de terça- feira, e insistiu: “Nosso ecossistema está mais forte do que nunca.”
Cook está trabalhando além do expediente regular para convencer Wall Street de que todos os novos clientes que compraram aparelhos da Apple nos últimos dez anos – dos quais mais de 1,4 bilhão ainda está sendo usado, como iPads, Macs e Apple Watches, além dos iPhones – constituem alicerces sólidos do crescimento futuro.
No mês que transcorreu entre a advertência da Apple sobre a receita e a publicação de seus resultados integrais, a máquina de relações-públicas da empresa entrou em marcha acelerada. Janeiro, normalmente, é um período relativamente tranquilo para as notícias de produtos da Apple – uma calmaria entre o lançamento do iPhone em setembro e o frenesi de suas vendas do período de festas e a próxima onda de lançamentos que normalmente ocorre em abril.
Mas não foi assim neste ano, quando Cook fez sua estreia no Fórum Econômico Mundial em Davos e apareceu em canal de TV especializado em economia e negócios falando com empolgação sobre as perspectivas da empresa.
Paralelamente, a Apple fez uma série de anúncios, que apregoavam ao mesmo tempo uma expansão de seus produtos já existentes – entre os quais o lançamento de seu alto-falante HomePod na China, uma aliança com a seguradora de saúde Aetna para impulsionar o Apple Watch e mais varejistas apoiando sua rede móvel de pagamentos Apple Pay – bem como iniciativas voltadas para reforçar a comunidade Apple, destacando o investimento anual de US$ 60 bilhões em fornecedores nos Estados Unidos e um novo “Camping de Empreendedores” em sua sede para mulheres desenvolvedoras de aplicativos.
Os resultados divulgados na terça-feira acrescentaram um reforço ao argumento central de Cook de que os serviços on-line podem compensar parte da desvantagem representada pelas vendas do iPhone. A Apple Music tem mais de 50 milhões de assinantes pagantes, enquanto o aplicativo News dos iPhones e iPads tem 85 milhões de usuários mensais. No total, a Apple gere mais de 360 milhões de assinaturas, incluindo as de seus serviços próprios e as de clientes que usam o sistema de pagamento da App Store para pagar serviços mensais como o LinkedIn, o Tinder ou o Pandora.
Alguns grandes serviços por assinatura, como o Netflix e o Spotify, deixaram de autorizar os clientes a pagarem por meio da App Store, a fim de evitar o desconto da comissão da Apple, de 15% a 30%.
Mesmo assim, a Apple incorporou 120 milhões de assinaturas pagas nos últimos 12 meses, e acredita que pode alcançar 500 milhões até o fim do ano que vem. Isso está ajudando a divisão de serviços da companhia a registrar um crescimento sistemático de cerca de 20% por trimestre, num momento em que a empresa se aproxima de sua meta de dobrar a receita entre 2016 e 2020.
Daniel Ives, analista da Wedbush Securities, estima que a divisão de serviços da Apple pode ter um valor de nada menos
que US$ 450 bilhões como subsidiária independente, mas continua preocupado com o fato de que as vendas fracas de iPhone na China “não dão sinal de melhorar nos próximos trimestres”.
“O discurso da noite passada é muito desencontrado: a Apple e Cook enfrentam um de seus períodos de crescimento mais difíceis da história da empresa”, disse Ives. “Há, sem dúvida, uma escalada semelhante à do Everest pela frente para a Apple contornar sua estagnação na China no curto prazo.”

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