Sucesso nos EUA transforma TikTok em símbolo da China e fortalece imagem do país

Nenhum aplicativo provocou tanta mudança na experiência dos usuários de redes sociais e atraiu tamanha popularidade nos últimos sete anos como o chinês TikTok. Sua relevância se tornou tão grande que atraiu a atenção das autoridades dos Estados Unidos, que ameaçam banir a plataforma do país, e criou um problema diplomático entre Washington e Pequim. Por trás da disputa, o sucesso do TikTok reverbera um plano há muito buscado pela China: o crescimento de sua influência.

Por ter se tornado esse símbolo, o TikTok auxilia diretamente a imagem que o mundo tem da China. Segundo uma pesquisa publicada no ano passado pela Pew Research Center, um instituto sediado em Washington, as inovações tecnológicas do país são vistas como o seu aspecto mais positivo. Nesse quesito, ao lado dos veículos elétricos, dos trens-balas e de outras tecnologias chinesas, o aplicativo tem grande contribuição.

O aplicativo mudou o modo como as redes sociais funcionam e quebrou a hegemonia de plataformas americanas como o FacebookInstagram e YouTube. O trunfo está ligado à lógica que ele opera, a partir de um algoritmo preciso que faz o conteúdo ir até os usuários. Se antes as redes sociais eram baseadas na conexão interna entre usuários, agora quem domina são os códigos de personalização.

A nova lógica foi responsável por criar uma comunidade de 170 milhões de usuários nos EUA, dos quais grande parte são menores de idade. Ante a popularidade, autoridades passaram a acusar o TikTok de ser um ‘Cavalo de Tróia’ com capacidade de coletar dados de usuários e revertê-los em influência e espionagem chinesa por causa das leis da China que exigem que empresas forneçam informações aos órgãos estatais. De modo contraditório, alguma dessas mesmas autoridades, como o presidente Joe Biden, têm perfis oficiais no aplicativo que também ajudam a entender a relevância que ele ganhou no país.

Isso torna a influência causada pelo TikTok inegável. E por mais que haja uma autonomia com relação à Pequim, o aplicativo passou a ser visto um símbolo do desenvolvimento tecnológico da China, capaz de alterar o ecossistema das grandes empresas de tecnologia. “O TikTok causou um impacto no ecossistema das big techs. Não tem apenas a ver com a disputa de poder das grandes empresas, mas também com uma mudança na forma de consumirmos as redes sociais, como nós buscamos conteúdos”, disse jornalista e professora da Universidade Paulista,Issaaf Karhawi, que pesquisa a cultura dos influenciadores digitais desde 2014.

Reconhecer a influência do aplicativo não significa o seu uso como uma máquina de propaganda do Partido Comunista da China aos moldes clássicos da influência cultural exercida pelos Estados Unidos e União Soviética no século passado. Pelo contrário. De acordo com especialistas, não há nada que indique um controle do conteúdo do TikTok pelo governo chinês. Além disso, a plataforma afasta discussões políticas e se adapta ao máximo ao usuário para mantê-lo no feed por mais tempo. Quem não tem nenhum interesse na China, por exemplo, dificilmente receberá vídeos que falem sobre o país.

Em 2019, o fundador do Facebook e proprietário da Meta, Mark Zuckerberg, considerou o desincentivo ao debate público uma diferença cultural fundamental entre o TikTok e o Facebook. Ou, em um outro sentido, entre a China e os EUA. “A China está construindo a sua própria Internet, focada em valores muito diferentes (dos americanos) e agora está exportando a sua visão da Internet para outros países”, afirmou em um discurso na Universidade de Georgetown.

Para Karhawi, no entanto, o debate público nunca foi uma prioridade para as redes sociais e não é diferente com o TikTok. “O início das redes sociais, e isso nós podemos ver até mesmo antes do Facebook, no Orkut (rede social popular no Brasil durante os anos 2000), traz consigo a segmentação, como uma oposição a grande mídia”, explicou. “O que o TikTok faz é potencializar essa segmentação em uma hipersegmentação, criando uma rede sobre medida para os usuários.”

“O que há de diferente no TikTok é a ideia do algoritmo que oferece uma experiência ainda mais precisa. Você não precisa ter uma rede de conexões (amigos e seguidores, por exemplo) para essa segmentação, como era necessário até então. Agora, o próprio algoritmo faz isso por você”, acrescentou.

Para construir essa experiência, o aplicativo também se utiliza de uma outra característica inerente à internet: a lógica viral. O TikTok reúne as tendências, incentiva os usuários a replicá-las (basta pensar nas danças que viralizam a partir do aplicativo) e acaba gerando impacto cultural. Se antes a rede de conexões de amigos e seguidores podiam criar bolhas que afastavam determinados conteúdos de nossa experiência, os trends que o algoritmo reconhece que pode interessar o usuário tem capacidade de colocá-lo em contato com novos produtos. Como uma nova série de TV, uma nova música ou um novo artista.

É aí que a China tende a ganhar, ao menos nos lugares com quem compartilha uma língua e uma cultura em comum, como Taiwan.

O caso de Taiwan: artistas chineses se popularizam na China através do TikTok

Na ilha autônoma de Taiwan, artistas chineses tem vencido a barreira política que separa Pequim e Taipei e viralizam entre os jovens taiwaneses, conectando dois territórios que partilham uma história em comum. Isso se torna evidente nas músicas mais ouvidas na ilha. Pelo menos três artistas e grupos musicais chineses que se popularizaram no TikTok figuram nas listas de mais ouvidas no Spotify em Taiwan nos últimos três anos: Ren Ran, Zhang Yuan e Xiao A Qi.

Os três tinham músicas no topo das mais populares em agosto de 2022, quando a então presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, visitou a ilha e irritou Pequim, que respondeu com exercícios militares sem precedentes no Estreito de Taiwan. Foi o pior momento da relação entre Pequim e Taipei em anos, mas as tendências espalhadas pelo aplicativo permaneceram e mantiveram um intercâmbio entre os dois territórios.

Para compreender como a estrutura do aplicativo facilita esse intercâmbio, é preciso ir na origem do TikTok, quando o aplicativo ainda era chamado Musical.ly e tinha foco em desafios de sincronização labial. Foi sob esse nome que a plataforma começou a se popularizar tanto na China quanto nos EUA, com os desafios incentivados e alimentados por usuários que fazem parte de uma cultura que aprecia o karaokê e batalhas de lip sync em shows de drag queen.

Foi assim, por exemplo, que a música Pássaros e Cigarras (飞鸟和蝉, em mandarim), de Ren Ran, uma cantora nascida na cidade chinesa de Chengdu, viralizou. Influenciadores digitais desafiaram seus seguidores a postar vídeos cantando a música e logo ela estava entre as mais ouvidas em Taiwan.

O sucesso dos artistas chineses exemplifica um caso bem-sucedido de influência cultural da China, que reivindica Taiwan como parte de seu território e planeja a reunificação. Os dois territórios partilham uma história e uma língua em comum, mas estão separados desde a Revolução Chinesa em 1949, quando os comunistas venceram a guerra civil contra os nacionalistas. A China continental, o território chinês que fica no continente asiático, se tornou então a República Popular da China, enquanto Taiwan continuou sob a autoridade do Kuomitang (o Partido Nacionalista Chinês) com o nome oficial de República da China, que perdura até hoje.

Desde a separação, as barreiras culturais entre os dois territórios aumentou. Taiwan viveu uma febre da influência cultural ocidental, com músicos taiwaneses se popularizando nos anos de 1970 e 1980 com versões em mandarim de bandas como a britânica New Order. Já no cinema, diretores famosos da ilha como Edward Yang (nascido em Shanghai, mas criado em Taipei) 

A China, por outro lado, enfrentava nas mesmas décadas o processo de reabertura após dez anos da Revolução Cultural liderado por Mao Tsé-Tung, no intuito de eliminar influências capitalistas. Com os primeiros anos de reabertura dedicados ao crescimento do país, ter influência cultural não estava entre as prioridades do país, mas isso muda nos anos 2000, quando a China se torna a segunda maior economia do mundo. Desde então, os líderes comunistas falam abertamente sobre a necessidade de melhorar a imagem da China tanto dentro do país quanto internacionalmente e incentivam a criação de produtos culturais para esses fins.

Essa estratégia é conhecida no âmbito das relações internacionais através do termo soft power, que descreve a habilidade de um Estado influenciar de forma indireta o comportamento ou o interesse de outros Estados através da cultura e do entretenimento, em oposição a influência através do uso da força militar ou econômica, chamados de hard power. No Ocidente, é fácil visualizar o soft power exercido pelos Estados Unidos, por exemplo, através do cinema, que exportou um estilo de vida americano para todo o mundo. Outro exemplo é a Coreia do Sul, que exportou o K-Pop e os doramas (gênero de drama asiático).

Ao menos em Taiwan, o impacto do soft power chinês, exercido através do seu produto mais popular, tem sido avaliado como perceptível – e positivo para Pequim. “O soft power da China, incluindo os seus produtos culturais e de entretenimento, teve impacto nos taiwaneses e reduziu largamente a mentalidade de ‘se opor a tudo que é chinês’”, disse o professor associado da Universidade de Providence, Tsai Cheng-hsiu, em uma reportagem para a Bloomberg em dezembro do ano passado.

O mesmo não acontece, no entanto, no âmbito global. Nos EUA, Europa ou Brasil, o TikTok também dita as tendências, mas em vez de artistas chinesas como Ren Ran, o aplicativo alçou artistas de suas respectivas línguas, como o americano Lil Nas X ou a brasileira Marina Sena.

China quer transformar sua imagem no mundo através do entretenimento, mas crises e formatos dificultam plano

Essas diferentes tendências pelo TikTok no mundo servem à priori de amostra para o aplicativo se reafirmar como uma plataforma de entretenimento baseado na segmentação, capaz de se adaptar ao público de cada país. E, segundo o analista sênior do Eurasia Group especialista em China, Dominic Chiu, também afastam a ideia de que a China prioriza seus próprios conteúdos para moldar sua imagem global.

O especialista afirma que a promoção de conteúdos que podem ser favoráveis a China no TikTok, como o exemplo de Taiwan, não podem ser atribuídas a uma diretiva do governo para os proprietários do aplicativo. “Não há provas conclusivas de que o TikTok utilize sistematicamente o seu algoritmo para promover conteúdos pró-China”, disse. “Seria um exagero dizer que o conteúdo dos vídeos do TikTok é o resultado de decisões políticas deliberadas tomadas por Pequim para promover a sua imagem.”

Em contrapartida, o exemplo de Taiwan mostra como o conteúdo chinês pode ser proveitoso para a China se ganhar repercussão no aplicativo. O governo chinês sabe disso e incluiu a promoção à cultura entre seus pilares de governança, tanto para o público interno e externo. Para cada um desses públicos, há uma estratégia que começa pelo próprio desenho da internet chinesa.

Na China, a versão do TikTok utilizada pelo resto do mundo é proibida, assim como o Google, Facebook, YouTube, Instagram, WhatsApp e outras plataformas ocidentais, mesmo que o aplicativo seja chinês. Para todos esses, há uma versão chinesa que funciona dentro do país: WeChat, substituto do WhatsApp; Bilibili, semelhante ao YouTube; e o Douyin, a versão permitida do TikTok.

A divisão, afirmou Dominic Chiu, reflete a capacidade de censura do governo chinês para afastar conteúdos que podem ser vistos como imorais ou contrários a China. “Uma versão é usada internamente quando está sujeita aos requisitos de censura da China, e a outra é usada internacionalmente, que em geral opera num ambiente de Internet relativamente livre”, disse.

Naturalmente, as preocupações para cada um dos públicos também são diferentes. Para o público interno, o governo chinês tem priorizado a “promoção da cultura tradicional chinesa”, como uma forma de promover o desenvolvimento do país com o resgate da história milenar da China. Para o público externo, a maior preocupação, externada pelo líder chinês Xi Jinping em uma reunião do comitê central do Partido Comunista Chinês em 2020, é “fortalecer a capacidade de comunicação internacional”.

“É importante contar bem as histórias da China, fazer nossa voz ser ouvida e apresentar ao mundo uma imagem verdadeira, multidimensional e panorâmica do país”, afirmou Xi Jinping na ocasião, em um discurso registrado no livro “Xi Jinping: A Governança da China IV”. Para isso, Xi cita diferentes frentes de atuação, dentre elas os produtos culturais.

O governo tem obtido êxito no plano interno. Um levantamento da revista britânica The Economist na plataforma de avaliação de filmes Douban (uma espécie de Letterbox chinês) identificou que a partir de 2020 a audiência de filmes locais superou a de filmes de Hollywood no país, por exemplo. O Douyin tem 700 milhões de usuários, e entre seus conteúdos virais estão vídeos que falam ou ensinam danças chinesas tradicionais.

No exterior, o país tem conseguido sucesso com a produção de animações – O Rei Macaco, uma versão animada de uma história tradicional da China, por exemplo, foi o filme mais visto da Netflix em agosto de 2023 –, mas esbarra em limites. O formato é um deles, com a China ainda sem encontrar o seu K-Pop ou dorama para exportar a sua cultura. O outro é geopolítica: com crises de confiança nos últimos anos se intensificando nos EUA e na Europa, as políticas para a pandemia de coronavírus e o aumento de vigilância, a imagem da China piorou no mundo, apesar de todos os esforços.

O TikTok foi arrastado para dentro destas crises desde que elas se iniciaram. A despeito de reafirmar a sua independência de Pequim, o aplicativo se tornou um símbolo da China e da entrada dos chineses no panteão das big techs, capazes de coletar dados e influenciar a cultura contemporânea. Ante ao que se transformou, a continuidade da plataforma ou não nos EUA, o principal rival da China, pode ser crucial para a imagem e a influência que o país pode exercer no mundo.

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