Como Jeff Bezos mudou tudo no ‘Washington Post’

Por João Luiz Rosa

Paul Farhi tem uma visão privilegiada da imprensa americana. Responsável pela cobertura de mídia do “Washington Post”, no qual ingressou há 31 anos, ele acompanha há muito tempo as tentativas das companhias jornalísticas para reagir à crise provocada pela internet, incluindo um dos movimentos mais contundentes do setor – o do próprio “Post”, vendido ao bilionário Jeff Bezos, fundador da Amazon, em 2013.
“Bezos mudou tudo para nós. Estamos indo muito bem. Caminhávamos para o vermelho e, agora, voltamos ao lucro. Como dono, ele faz as melhores coisas que se pode fazer. Nos dá muito dinheiro. E não nos diz o que fazer”, diz Farhi, que trabalhou como repórter de negócios, política e estilo, antes de assumir a área de mídia no “Post”.
O bilionário não é visto com frequência no jornal, que no fim de 2015, depois de 43 anos, se mudou para uma nova sede, a três quarteirões do antigo escritório. São três ou quatro visitas por ano, diz Farhi. Quando vai à redação, Bezos se encontra com Marty Baron, editor-executivo do “Post”.
Baron foi o jornalista que autorizou a investigação dos primeiros casos de pedofilia na Igreja Católica, quando estava à frente do “Boston Globe”. No cinema, foi interpretado pelo ator Liev Schreiber no filme “Spotlight” (Oscar de melhor filme em 2016). Foi um trabalho de interpretação perfeito, diz Farhi. “Ele [Baron] é muito quieto, atencioso e, você sabe, meio rabugento. Mas é um jornalista muito, muito bom.”
Bezos pagou US$ 250 milhões à família Graham, que comandou o “Post” por mais de 80 anos. Desde então, não se sabe quanto investiu na companhia, porque os números não são públicos. Mas o reforço à redação tem sido recorrente em sua gestão, com a contratação de profissionais. Em meados de 2017, o bilionário disse, em evento, que os jornais precisavam parar de encolher para não reduzir sua relevância, e informou que o “Post” contratara 140 pessoas desde a aquisição.
“A fórmula, creio, é investir muito na área editorial, em repórteres, editores, jornalismo… E, então, o público virá atrás da informação”, afirma Farhi, que veio ao Brasil a convite do Insper.
A aquisição do “Post” não é um caso isolado entre as grandes companhias jornalísticas dos EUA. Com as dificuldades financeiras se agravando, outras empresas têm sido compradas por pessoas ricas, em especial magnatas da indústria de tecnologia. O “Boston Globe” foi adquirido por John Henry, dono do time de beisebol Red Sox; a revista “Atlantic”, por Laurene Powell Jobs, viúva de Steve Jobs, da Apple; e a “Time”, por Marc Benioff, da empresa de software Salesforce.
O “Globe” está ‘ok’, avalia Farhi. “Não se ouve falar de grandes cortes por lá”. A “Atlantic” é um “caso interessante”, diz. A revista é “competitiva” e faz “bom jornalismo”, mas produzi-la é caro. Como não cobra assinatura para acessar seu site, a “Atlantic” depende muito de atrair um volume maciço de acessos para gerar publicidade e sobreviver. “E criar tráfego pode degradar a qualidade, porque você precisa colocar um monte de caça-cliques [textos com apelos chamativos ou exagerados], o que não é bom.” Apesar disso, a revista está em um caminho ascendente. “Parece que estão melhores a cada mês.”
O caso da “Time” é diferente. “Não sei mais quem lê a revista”, diz Farhi. Ele compara a publicação à sua extinta rival “Newsweek”, cuja marca persiste em um site na internet – “uma sombra do que costumava ser”, diz. “Não sei como eles [a Time] continuam no negócio.”
Encontrar um dono rico pode não ser suficiente, adverte Farhi. “Há bilionários e bilionários. Rupert Murdoch [que comprou o “Wall Street Journal”] é um tipo de bilionário e Jeff Bezos é outro. Donald Trump pode ser bilionário, não se sabe, mas ele seria um tipo diferente de proprietário [de jornal]”, diz Farhi, numa referência à recente polêmica que eclodiu sobre a real valor fortuna do presidente dos Estados Unidos.
A aquisição do “Post” por Bezos, seis anos atrás, despertou temores de que o jornal teria sua autonomia comprometida, principalmente em relação aos negócios da Amazon. Mas Farhi diz que a cobertura permanece independente e o jornal vai contratar um repórter em Seattle para cobrir especificamente a Amazon.
Como exemplo da independência, ele cita o episódio rumoroso entre a Amazon e a cidade de Nova York. A gigante de comércio eletrônico pretendia construir na vizinhança do Queens – uma das cinco regiões da cidade – parte de sua segunda sede, com a abertura de 25 mil empregos. Boa parte da população e dos políticos, no entanto, não recebeu bem o projeto, o que levou a companhia a mudar de ideia. O “Post” foi o primeiro jornal a divulgar que os executivos da Amazon estudavam desistir do projeto, de US$ 3,7 bilhões, devido à oposição crescente. “Fizemos uma cobertura justa”, diz.
Em vez de tentar assumir a orientação editorial do “Post”, Bezos acrescentou uma visão de negócios ao jornal – e isso faz a diferença, afirma o jornalista.
A companhia se apoia, hoje, em um tripé de receita. A publicidade impressa continua a ser uma delas, mas numa proporção incomparavelmente menor que no passado. Os anúncios digitais completam o braço publicitário, mas ainda não são tão significativos.
No que “Post” tem avançado fortemente são as assinaturas digitais. São quase 2 milhões de assinaturas, que atraem 85 milhões de usuários únicos por mês, diz Farhi. Essa ênfase deu novo fôlego à companhia, permitindo atrair leitores de outros Estados americanos e do exterior, que não leriam o jornal não fosse pela internet.
O terceiro fluxo de receita é o que mais caracteriza a intervenção de Bezos no modelo de negócios do “Post”. Trata-se do Arc Publishing, conjunto de softwares que o jornal criou e passou a vender como serviço. Os programas ficam armazenados na infraestrutura da AWS, braço de serviços de nuvem da Amazon. Mais de 30 companhias adotaram o pacote, segundo divulgou o “Post”.
Concebido para facilitar a publicação de notícias, o Arc passou a incorporar outras funções desde seu lançamento, em 2014. As mais recentes incluem desde a administração de paywall (software que define o pode ou não ser visto de graça em um site), até a captura de e-mails dos leitores. O Arc pode representar uma receita adicional de US$ 100 milhões para o “Post”, disse recentemente o chefe de tecnologia da empresa, Shailesh Prakash.
As mudanças de comportamento provocadas pela internet têm atingido duramente os jornais americanos. Na maioria deles, de 75% a 80% da receita ainda vem do meio impresso, que perde espaço rapidamente, diz o jornalista. Como não estão conseguindo encontrar maneiras de compensar essa diminuição com novas receitas digitais, muitas publicações estão enfrentando o risco de desaparecer.
“Há três jornais que serão os prováveis sobreviventes [nos EUA] e se fortalecerão no futuro: o ‘Post’, o ‘New York Times’ e o ‘Wall Street Journal”, diz Farhi. A forte base de assinantes é a credencial comum entre o grupo remanescente.
A circulação dos diários americanos caiu para menos da metade em trinta anos, do pico de 63,3 milhões em 1984 para estimados 30,9 milhões em 2017, segundo o Pew Research Center, organização de pesquisa sediada em Washington. A receita publicitária dos jornais, que somou US$ 49,9 bilhões em 2005 – seu mais alto patamar histórico – caiu para US$ 16,6 bilhões dois anos atrás, de acordo com o levantamento. No mesmo período, o número de jornalistas nas redações diminuiu de 72,6 mil para 39,2 mil.
A preocupação maior é com cidades cujos jornais não têm as mesmas possibilidades de buscar novas fontes de renda, como o “Post” e os outros grandes títulos, diz Farhi. A imprensa regional, que já foi exuberante nos EUA, está sob ameaça.
Estudo da Universidade da Carolina do Norte mostra que quase 1,8 mil jornais fecharam as portas nos EUA desde 2004, principalmente em cidades menores. Cerca de 200 condados americanos não têm mais nenhum jornal em circulação. E 1.449 dos 3.143 existentes no país só contam com um jornal, geralmente semanal, de acordo com o estudo, apropriadamente chamado “O deserto de notícias em expansão”.
“Como as pessoas de Cleveland obtêm informação [local] se o jornal que sempre foi o mais forte da cidade tem, creio, 32 jornalistas para cobrir uma área com 2 milhões de pessoas? Isso é insano”, exemplifica.
Para atrair leitores, diz Fahri, o jornalismo vai exigir uma combinação cada vez mais efetiva de meios diferentes para transmitir notícias, incluindo formatos como “podcasts”, vídeos e canais em rede sociais, muito procurados pelas gerações mais jovens.
A própria família oferece exemplos do poder de atração desses novos formatos, diz. Seu filho mais velho, de 34 anos, e que também é jornalista, adora ouvir “podcasts”, algo que não existia quando Farhi começou. A mais nova, de 26 anos, já empregou suas habilidades dramáticas em um deles. Atriz de teatro musical, ela foi recentemente contratada para participar de um “podcast”, como se fosse em uma antiga radionovela. “É o futuro voltando ao passado. Trata-se de algo novo, mas também muito velho.”

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