Ódio, recusa e narcisismo das pequenas diferenças

Pedro de Santi

As eleições seguem evocando afetos em geral ocultos, mas sempre reais e presentes. Por tanto acompanhar debates e redes sociais, já ando nauseado e com vontade de mandar tudo às favas. Mas não deixo de achar que é uma oportunidade especial pensar sobre aquilo que só tão raramente ganha tanta visibilidade.

Tenho dado o tom de ensaio aos meus posts aqui no Nota Alta ESPM e no Newronio e feito comentários mais ao sabor do dia; mas neste, opto por dar um tom mais teórico, ainda que básico. Não tenho entrado em aspectos ideológicos ou econômicos, tanto por não considerar que tenha conhecimento específico a respeito, quanto por pensar que há uma dimensão psicológica primitiva e violenta envolvida. Como ela é anterior à capacidade pensar, vale para todas as partes envolvidas.

Certamente, há diferenças importantes entre as formas de pensar a sociedade e o processo do poder executivo entre cada uma das partes em disputa. Elas não são iguais e há motivos legítimos para se optar por qualquer uma delas; eu próprio tenho minha preferência que, ainda que não nomeada, provavelmente transparece em meu discurso. A discussão e diferenciação é possível e necessária, mas para que pensar seja possível, é preciso matizar a tonalidade passional.

Para meu campo de estudo, a psicanálise, não teríamos uma agressividade primária ou natural. Buscamos prazer e a preservação da própria vida. Como em Thomas Hobbes, buscamos o que é bom (o que nos torna insaciáveis e em busca por sempre mais) e evitamos o que é mau, sendo que o pior dos males seria morrer. A agressividade é gerada por uma ofensa narcísica. Quando alguém invade meu espaço, rouba uma posição ou objeto meus, sinto-me agredido e perseguido. Daí nasce um impulso reativo de destruir aquele ou aquilo que pareça ser a causa da injúria sofrida. O ódio anda junto da frustração.

Em certas formulações da psicanálise, fala-se ainda de um impulso de morte, mas ele não é a agressividade. É um ruído intangível em direção à própria morte: o desejo de não desejar. Ele teria mais a ver com um trabalho silencioso de dissolução; adiante, voltarei ao tema.

Somos auto-referentes, só sentimos o que sentimos. É uma aquisição lenta e quase sempre irregular à percepção de que os outros também sentem coisas, não existem para ou em função de nós. Isto sempre doerá: o outro não é ‘eu’, não existe para mim; vive, deseja e tem história para além de mim. As pessoas reais decepcionam as idealizações que fazemos uns com relação aos outros. A alteridade e as diferenças são vividas incialmente como violência e ofensa contra o eu. Provavelmente (só podemos inferir), o bebê humano leva alguns meses para se dar conta de si, ou seja, perceber que há um ‘eu’ e um ‘não eu’; em primeiro lugar, aquele que lhe presta os cuidados fundamentais e de quem depende. E depois, pior, que este primeiro outro de quem depende também existe para além, deseja outras pessoas e coisas. Dada a condição de desamparo em que nasce o ser humano, esta percepção deve ser vivida como medo de abandono, perigo de morte. Concomitantemente à descoberta do outro se dá uma “desfusão” e vivemos, assim, a primeira dor de separação.

Nossas separações contemporâneas sempre reabrirão como um zíper a história de nossas perdas, remetidas a esta primeira. Mas o fato de estarmos em descontinuidade não é vivido como condição humana. O bebê humano não é um pequeno Martin Heidegger ante o dasein, o ser aí, a condição de estarmos lançados no mundo. A separação é alucinatoriamente atribuída a um perseguidor, um terceiro imaginarizado como forte a ponto de nos ter expulso do paraíso. E nós o odiamos e fantasiamos que seu desaparecimento restituiria o estado anterior, agora idealizado como sendo de fusão e gozo. Esta é uma forma de falar do complexo de Édipo.

Foi por isto que disse que a fonte da agressividade é a reação a uma ferida narcísica. A percepção de que as coisas não correspondem às minhas fantasias e desejos cria a imaginarização de um inimigo, fonte e objeto de ódio. E a fantasia de que em sua ausência (com sua aniquilação) tudo o que sentimos que não está no lugar passaria a estar.

Lembremo-nos aqui de Elias Canetti, em “Massa e poder”, quando diz que a paranóia é a doença do poder. Aquele que ocupa uma posição de poder se sente cercado por um bando odioso que o persegue. Isto justifica a mobilização de todo e qualquer meio violento para destruir o outro, em auto-defesa.

Numa segunda vertente, tangencialmente relativa, o ódio ao outro também é um motor importante da manutenção da identidade de grupos. Da perspectiva da psicologia individual, a  inclusão em grupos requer, entre outras coisas, a renúncia a impulsos próprios não aceitos pelo grupo; assim como o ocultamento da tensão interna entre os membros, gerados pelos atritos inevitáveis. O que fazemos com a raiva ou irritação que sentimos com relação a alguém que ao mesmo tempo amamos e respeitamos? O mais imediato é elegermos um elemento externo e projetamos sobre ele toda a hostilidade. A identidade de grupo (como também a individual) requer a afirmação ante e anti um contra-grupo: para que eu mantenha a ideia de que ‘nós’ sejamos legais, preciso construir a ideia de um ‘eles’ que não o sejam, por oposição. Falar mau dos outros é um alívio, um prazer e poderoso instrumento para a criação de cumplicidade e coesão de um grupo.

Mas aqui entra o mais agudo da observação seminal de Sigmund Freud, em “Psicologia de grupos e análise do eu”; nossos inimigos são escolhidos segundo um mecanismo que ele batizou genialmente de ‘narcisismo das pequenas diferenças’. Escolhemos como objeto privilegiado de nosso ódio alguém extremamente parecido conosco, da mesma dimensão de poder e sobre quem podemos projetar tudo aquilo que odiamos em nós. Uma pequena diferença entre nós é tudo o que é preciso para que se diga que um é bom e o outro mau.

Esta é a lição mais dura a ser levada em conta, reflexivamente: perceber a grande medida em que grupos opositores são mais parecidos entre si do que os membros de cada um gostaria de admitir. O quanto está se lutando pela própria afirmação e não pela capacidade de representar os anseios do povo (que tem dado claros sinais de que não se vê representado pelo jogo da política profissional); e o quanto denunciamos no outro especificamente atributos nossos que neles projetamos. É dureza ser freudiano e saber que tudo o que teorizamos deve ser conjugado em primeira pessoa.

Somos, assim, agudos observadores dos pontos fracos do outro e, não é que não vejamos os nossos, mas acionamos o mecanismo de defesa chamado ‘recusa’ para desqualificar suas consequências. Quantas falas sobre nossos votos começam com enunciados como: “eu sei, mas mesmo assim…”; “mas, independente de qualquer coisa…”. Isolamos os dados de realidade que nos incomodam e seguimos sustentando nosso pensamento/desejo.

As oposições PT x PSDB, ricos x pobres, sudeste x nordeste, progressistas x conservadores, racionais x irracionais, etc., são artificiais, não dão conta da complexidade das relações e da realidade e escondem quanta coisa mais profunda está fora do lugar. Toda esta agressividade positivada ao menos tem objeto e é visível. Este plano ruidoso (em salas de professores, redes sociais ou botecos) da vida ainda pode esconder outro: algo que pode ter estado presente nas manifestações de junho de 2013, na onda Marina, no voto anti-governo e, sobretudo, no alto grau de abstenções de voto, somados aos votos em branco ou nulos. Há algo anterior indicando que haja algo mais profundamente fora de lugar em nosso convívio social. Isto sim pode ter relação com uma pulsão de morte.

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