Mudança no Google marca fim de uma era

A coisa mais notável sobre a saída abrupta dos cofundadores do Google do comando da gigante de tecnologia que eles passaram 21 anos construindo foi a forma discreta como isso se deu.
O anúncio na noite de terça-feira de que Larry Page e Sergey Brin estavam deixando o cargo com efeito imediato marca o fim de uma era. Como a saída de Jack Ma da gigante chinesa de comércio eletrônico Alibaba, em setembro, o movimento inaugura uma nova fase para um dos impérios dominantes da internet.
Desde que Bill Gates anunciou, em 2006, que estava deixando a Microsoft, não se viam fundadores de uma empresa americana líder em tecnologia simplesmente optar por sair de cena.
Ainda assim, as ações da Alphabet, controladora do Google, subiram um pouco depois do anúncio, e a maioria dos analistas e investidores mal piscou com a notícia.
“Acho que Larry Page e Sergey Brin meio que haviam saído do negócio há um bom tempo – isso provavelmente apenas formaliza o que já vinha ocorrendo”, disse Kevin Walkush, gerente de carteiras de investimento na Jensen Investment Management, acionista da Alphabet.
A saída deles, contudo, chegou sem nenhum alerta prévio e em um momento no qual o Google enfrenta consideráveis pressões internas e externas. “Isso certamente me surpreendeu”, disse Sebastian Thrun, que começou o projeto de carro autoguiado do Google e cujo projeto mais recente é a Kitty Hawk, empresa de carros voadores financiada por Page. Thrun diz que Page não havia dado nenhuma indicação de que pretendia renunciar.
Os dois cofundadores retrataram a saída como parte de uma evolução lógica que já havia incluído o afastamento deles do comando direto do Google. Com a criação da empresa de gestão de participações Alphabet, há quatro anos, eles transferiam a administração do Google para Sundar Pichai, um alto gerente de produtos, com Page tornando-se executivo-chefe da nova holding e Brin, o presidente.
À época, o movimento refletiu interesses pessoais que haviam se expandido muito além do Google – mesmo com a empresa de busca ainda gerando mais de 99% da receita do grupo e todo o dinheiro necessário para financiar as demais atividades, da construção de carros autônomos ao ingresso na área de saúde.
Page, que fora o chefe anterior do Google, tinha mostrado pouco interesse em administrar o dia a dia dos negócios. Em vez disso, estava fascinado pela chance de ir atrás de inovações tecnológicas em vários setores – papel que tinha mais liberdade de desempenhar estando no comando de uma holding como a Alphabet.
“Na minha opinião, Larry é o Thomas Edison de nosso tempo”, disse Thrun. “Ele não inventou apenas uma coisa. Quer estar na mais avançada vanguarda da tecnologia, seja ela qual for.”
Brin, por sua vez, havia se dedicado às incursões do Google em tecnologias audaciosas no laboratório Google X, que ele ajudara a criar para incubar seus empreendimentos mais ambiciosos, os chamados projetos “moonshot”. Literalmente, a expressão significa “voo à lua”. No Google, designa projetos futuristas, sem retorno financeiro em curto prazo. Brin assumiu o papel de defesa de vários projetos – embora a reação contrária aos óculos de realidade aumentada Glass, por questões de privacidade, tenha mostrado como a obsessão do Google com avanços tecnológicos pode, às vezes, ficar cega a considerações humanas.
Ao partirem, os fundadores tentaram retratar seus papéis desde a formação da Alphabet como apenas temporários: com as outras unidades de negócios operando sob equipes administrativas separadas – mesmo que, em alguns casos, com investimento externo e conselhos de administração próprios – uma camada de administradores na esfera da holding já não era necessária.
De qualquer forma, eles continuarão no conselho de administração da empresa e como acionistas controladores, com ações que lhes dão direito especial de voto de 51%. Portanto, qualquer mudança significativa sob a nova administração é improvável.
“Está se falando é de uma mudança no título, em vez de uma mudança na prática”, disse Charles Elson, professor de governança corporativa na Universidade de Delaware, sobre a mudança na administração. “Na prática, eles ainda estarão comandando o espetáculo, essa é a chave.”
A transição, porém, deixa a sensação inevitável de passagem de uma era. “Duas pessoas que abandonaram a universidade construíram uma das maiores empresas do mundo – isso é notável”, disse Thrun.
A mudança também alimenta especulações quanto à possibilidade de que sejam feitos cortes nos projetos “moonshot” da Alphabet. Com Ruth Porat – que se juntou à empresa como diretora de finanças, egressa do Morgan Stanley -, a companhia desistiu de alguns grandes planos e encolheu outros.
As medidas atenuaram as inquietações de Wall Street e reduziram a pressão por mais ações imediatas. Acabar com o projeto para construir uma empresa doméstica de banda larga nos EUA, por exemplo, estancou a maior fonte de gastos do caixa, segundo Walkush, da Jensen Investment Management. Desde então, os acionistas não têm se incomodado muito com o que a Alphabet chama de “outras apostas” e dado mais atenção à maior fonte de geração caixa, o Google, acrescentou Walkush.
Ainda podem surgir desdobramentos no longo prazo com a saída dos fundadores. Eles podem, por exemplo, seguir o caminho de Gates, que reduziu sua participação pessoal na Microsoft para dedicar-se a projetos mais pessoais.
A participação combinada de Page e Brin, de 11,4% do capital da empresa, vale atualmente US$ 101 bilhões. Com 46 anos, nenhum dos dois mostra intenções de recuar quanto às altas ambições que levaram o Google a declarar como missão organizar “toda a informação do mundo”. Page, por exemplo, “quer mudar o mundo, e ele é jovem”, disse Thrun. Sem mais obrigações cotidianas administrativas, ele terá mais liberdade para direcionar seu dinheiro e paixão a outros empreendimentos.
A sacudida administrativa coloca Pichai no assento de comando. Como chefe do Google, ele já enfrentou a pressão de funcionários que queriam influenciar os rumo sda empresa, além de ameaças externas de políticos e órgãos de regulamentação preocupados com o poder econômico do grupo e sua influência na mídia.
Ao assumir mais responsabilidades – entre elas, tornar-se chefe de uma empresa de capital aberto – Pichai pelo menos tem a vantagem de não representar uma incerteza. “Acho que ele teve muitas boas experiências”, disse Walkush, acrescentando que Pichai e Ruth Porat têm alto apoio dos acionistas.
A ascensão de Pichai também pode se mostrar libertadora. Uma pessoa do Google disse que a responsabilidade adicional poderá tornar a vida dele mais fácil, já que o executivo não precisará prestar contas à camada administrativa na esfera da holding.
Com a saída de Page, avesso aos holofotes, a Alphabet vai se livrar de uma questão que começava a incomodar: por que seu principal executivo se mantinha invisível em um momento crucial para a companhia? Enquanto Pichai tenta aliviar as preocupações que se espalham pelo poder crescente do Alphabet, Page se manterá firmemente na vanguarda.

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2019/12/06/mudanca-no-google-marca-fim-de-uma-era.ghtml

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