Macron e a imigração

De repente, quase em caráter de urgência, o presidente Emmanuel Macron mergulhou em um assunto do qual sempre fala, mas nunca ousou realmente enfrentar: a imigração. Nos últimos 30 anos, nenhum governo se dispôs a encarar a questão ou adotar programas claros para lidar com ela.
Macron entrou na discussão a sua maneira: com entusiasmo e sem aviso prévio. Sua decisão se deu bruscamente, após uma reunião de parlamentares do grupo fundado por ele há alguns anos, o República Em Marcha. Em seu discurso, anunciou que promoverá debate sobre imigração. 
A intenção é atacar de frente, sem tabus, esse abacaxi insolúvel que se instalou no coração da França. “Não podemos mais ficar sem encarar o desafio”, disse Macron. E de quem é a culpa do problema? Da burguesia, claro. A questão, segundo explicou Macron aos participantes, é saber “se queremos ou não ser um partido burguês”. “Para os burgueses, a imigração não é problema. Ela é problema para as classes populares, que convivem com ela.”
Justo ou injusto, esse repentino ataque contra a burguesia soa estupefaciente na boca de Macron. Ele próprio é burguês até a raiz dos cabelos – pelas origens familiares, pela elegância da linguagem, por sua brilhante formação acadêmica, por suas amizades. Seu primeiro emprego foi de banqueiro do grupo Rothschild. Também os parlamentares e simpatizantes de seu partido são irremediavelmente burgueses. Antes de Macron, eles não eram políticos, mas ex-alunos de escolas de elite, altos funcionários, intelectuais de destaque. 
Assistimos então a um forte milagre: Macron, subitamente tocado pela graça, mudou o fuzil de ombro e passou a disparar. Primeiro, em si mesmo. Depois, em seus lugar-tenentes, ministros e seguidores. Até que finalmente nos burgueses.
Há várias explicações possíveis. A primeira é que Macron, tendo subitamente se dado conta das complicações em torno da questão dos imigrantes, fez um discurso sincero. Mas, como o pensamento de Macron tem sempre um duplo e até um triplo sentido, uma segunda explicação é que, há longos meses, Paris e outras cidades francesas são alvo da cólera e dos urros dos coletes amarelos, esses operários e camponeses pobres que não têm voz.
A impressão que se tem é que Macron, estupefato, descobriu com alguns anos de atraso que toda uma faixa da sociedade não tem direito a dinheiro ou palavra – como bem diziam Karl Marx, Proudhon, Babeuf, Theodore Roosevelt e até o maior economista da era moderna, John Maynard Keynes.
Há uma terceira explicação. Em 2022, a França votará para presidente. Macron, não é preciso dizer, sonha com um segundo mandato. Até agora, parece que será uma barbada, pois, frente a Macron, todos os grupos de oposição foram abatidos em pleno voo. Todos menos um: a Frente Nacional, de Marine Le Pen, que agora se chama Agrupamento Nacional (AN) e não se enfraqueceu como os outros – ao contrário, se fortaleceu.
Marine, que tem faro político, percebeu bem antes de Macron que o foco do AN não deve ser os burgueses, mas os desprezados e excluídos das benesses da opulenta burguesia parisiense. E, nesse ponto, a nova análise de Macron é certeira: para os operários, os imigrantes não são bem-vindos.
Imigrantes e famílias são sustentados pelo poder público, que os ajuda a se instalar, a se medicar e a se instruir. Além disso, são mais facilmente contratados pelas empresas, pois, mais vulneráveis, não ousam protestar e aceitam trabalhar por menos. Eles competem com os operários franceses por empregos.
Esse é um processo bem conhecido em todas as diásporas. Os imigrantes são inicialmente mortos, depois desprezados, denunciados, isolados. Após duas ou três gerações, são integrados à sociedade. Na França, tornam-se franceses. Então, é sua vez de se revoltar contra os novos imigrantes – sujos, sem instrução, preguiçosos, que não sabem a letra da Marselhesa e ocupam empregos dos bons franceses.
Marine sabe disso. Macron parece estar descobrindo, o que o fez mudar seu discurso sobre os imigrantes. Vai lançar uma política migratória mais dura? Improvável. Macron avança com passos sorrateiros, como um gato. E, em sua conversão em matéria de imigração, se arrisca a colidir com grande parte de seus simpatizantes. 

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