Missouri em Chamas: Ferguson e o outro lado da História Americana

Carlos Frederico Lucio

Tendo como epicentro questões raciais, o drama social vivido atualmente na cidade de Ferguson, Missouri (EUA) – que já está caminhando para a terceira semana – traz novamente à tona um assunto que é um verdadeiro câncer no mundo contemporâneo (e não somente para a sociedade americana): o ódio fomentado por diferenças raciais e étnicas. Um tema clássico para a Antropologia ao longo dos seus pouco mais de 100 anos de história. Se os fatos e o tema não são novidade, o que vem chamando a atenção nos eventos atuais é as proporções que ele vem assumindo e que estão sendo consideradas as mais sérias das últimas décadas no país devido à ação dos poderes constituídos: uma resposta truculenta das forças do Estado (no caso, na sua dimensão local, o município), que vem sendo classificada como desproporcional, desmesurada e sem sentido. Tudo isso, alimentado pelos resultados bem evidentes de uma política global de exclusão (a população de Ferguson não só é majoritariamente pobre, mas composta de cerda de 67% de negros e com uma estrutura de poder que não comporta 4% de representantes desta etnia). Isso o está tornando um fato histórico emblemático.

E agora, mais ainda, com os desdobramentos mais recentes: mobilização nacional, pronunciamento presidencial, manifestações de celebridades e o acirramento dos confrontos devido a mais um homicídio de um jovem negro que teria sido cometido por um policial branco em Saint-Louis, capital do estado e cidade vizinha à pequena Ferguson.

Se a história americana recente está repleta de exemplos de conflitos raciais por “n” motivos que se multiplicam, a repercussão desta resposta do Estado no caso Ferguson está provocando uma grande comoção e mobilização sem precedentes, pelo menos na sua  história recente. E, claro, suscita reflexões, reacendendo o debate acerca do próprio conceito de democracia, um dos operadores simbólicos mais fortes da constituição da nação americana.

Sempre que estou diante de fatos assim, não consigo deixar de me lembrar de um grande filme norteamericano, “Mississippi em Chamas”, de Alan Parker (1988). Numa interpretação livre, eu diria que, resgatando o princípio da Guerra de Secessão, o filme coloca a lógica ianque (expressa pela força de um Estado moderno, racional e legal representado pelo FBI, personalizado pelos papeis desempenhados por  Gene Hackman e Willem Daffoe) num embate direto contra a lógica Confederada (arcaica, racista, patrimonialista, personalista) expressa pelos integrantes da KKK e daqueles que os apoiam. Em uma cidade do estado americano do Mississippi, em 1964, três ativistas de direitos civis são assassinados, gerando uma investigação do FBI sobre a comunidade local e seu envolvimento com a KKK. Se o fato em si é bem diferente do que ocorreu em Ferguson, guarda alguma semelhança com o fato de que esta investigação leva os agentes do FBI aos meandros podres do envolvimento do poder local (incluindo aí a polícia) com o racismo e a violência perpetrados pela Klan. Inspirado (mas não totalmente fiel, segundo as críticas) em fatos concretos, histórias como a do filme são semelhantes a tantas outras narradas pela historiografia recente país, especificamente neste centro sul americano, como a do comerciante Vermon Dahmer, também assassinado no mesmo estado Mississippi por integrantes da Klan em 1966. E o cinema tem sido um meio muito interessante de refletir, ainda que no campo da ficção, sobre elas. Se organizações como a KKK foram supostamente banidas do território americano, não significa que as ideologias racistas que a sustentam o foram. Pelo contrário, como bem atesta os episódios de Ferguson.

Falando em Guerra Civil, cinema, e a construção de uma nação e de um país que se pretende o baluarte da democracia contemporânea, um dos filmes do cinema americano sobre o tema de que mais gosto, embora já esteja perto de completar duas décadas, é “A outra história americana”, de Tony Kaye (EUA, 1998). Este é um dos casos em que a versão do título (e não sua tradução literal) adquire um sentido tão (ou mais) forte quanto sua versão original (“American History X”). Isso porque o filme toca de forma bem aberta na ferida americana, escancarando uma série de dramas sociais, políticos e econômicos na configuração do neonazismo e dos dramas pessoas vividos pelas personagens. Dramas esses (cujo centro, aqui, é o racismo e o ódio por ele motivado) que justamente questionam o ideal de construção democrática e igualitária, compondo o que seria um certo “lado B” de sua história. Por isso gosto do título em português: não é “uma outra história”, mas “A outra história”.

Utilizando-se de um mix entre  drama psicológico (focado na história emocional que perturba e fragiliza o jovem Derek Vinyard, vivido magistralmente por Edward Norton e sua família), drama social (a depauperação da sociedade americana – no filme simbolizada pelas alterações sociais do bairro Venice Beach, em Los Angeles, com sua ocupação por gangues urbanas que espalham violência e acirram conflitos étnicos) e, claro, uma das principais chagas norteamericanas, o drama racial (abordado pelo crescimento da ideologia neonazista que está no epicentro do drama pessoal vivido pelo protagonista). Interessante perceber, no filme, como estas questões estão profundamente entrelaçadas para compor um quadro bastante forte de como fenômenos como o racismo são construídos. Entretanto, diferentemente do conservadorismo político do Missouri ou do Mississippi, a história deste filme se passa na pretensamente moderna L.A. e, por isso, as forças policiais, cuidadosamente orientadas pelo diretor “negro” da high school (duplamente PhD – segundo o próprio personagem afirma numa passagem). Talvez por isso, mostre uma certa harmonia entre as autoridades para resolver o problema do crescimento da violência, principalmente aquela motivada por razões de ordem étnico-raciais. Assim, este filme mostra, num certo sentido, o ideal de construção democrática e as funções básicas de um Estado pautado pelo princípio da legalidade e da institucionalidade; não o da truculência e da violência, como se vê em Ferguson.

Um dos clássicos do pensamento político contemporâneo, “A Democracia na América”, Alexis de Tocqueville, então um jovem francês vivendo numa França pós-revolucionária conturbada que via naufragar o sonho republicano perante o Terror e a restauração da monarquia sob Napoleão, é um dos mais instigantes livros para se pensar o sucesso deste modelo político do federalismo americano de 1776 e que consagra os princípios modernos da igualdade civil e da legalidade. Tocqueville, um jovem e talentoso estudioso do Direito (e que se questionava o porquê do fracasso francês na construção da república, diante do êxito logrado nessa empreitada pelos americanos), reconhecia na força da lei aceita e acatada pela sociedade um dos segredos do sucesso do modelo. É o que Max Weber vai chamar, mais tarde, de dominação legítima, ou seja, uma forma de dominação aceita pelas pessoas porque elas reconhecem a sua importância para a construção da dimensão do social, isto é, o espaço coletivo em que as vontades pessoais (incluindo aí ódios e outros arroubos emocionais) devem ceder a uma lógica da construção do equilíbrio e da organização. Para o sociólogo alemão, é o Estado que deve deter o monopólio do uso da força como forma de garantir esta organização e o equilíbrio deste espaço coletivo. Entretanto, está claro para Weber que, por se tratar de um poder legítimo e racional, esta força não pode ultrapassar os limites daquilo que é estritamente necessário para a manutenção da ordem. Nada mais. Exacerbações levam o uso do poder para o campo da ilegitimidade, do totalitarismo puro e simples.

Embora motivado por questões raciais, uma grande questão que o caso Ferguson nos traz para pensar é justamente no âmbito da ação do Estado. O que temos visto pelos meios de comunicação, confirmado por várias testemunhas que vem acompanhando in loco o desenrolar dos fatos, é justamente o contrário. Uma violência exagerada que vem acarretando mais reações explosivas de uma população já bastante acuada pela miséria, pela pobreza e pela exclusão social e política. Pelas informações que nos chegam, Ferguson tem nos mostrado uma esfera política muito longe do ideal construído pelo modelo federalista americano de igualdade e de combate ao ódio, visando a construção de uma nação harmônica, que tentou se firmar pós-guerra civil. Este ideal foi muito bem expresso no primeiro discurso de posse do presidente Abrahan Lincoln e que, curiosamente, serve de texto para fechar o filme de Tony Kaye (narrado por Daniel Vinyard, o irmão mais novo de Derek, assassinado vítima deste mesmo ódio):

“We are not enemies, but friends. We must not be enemies. Though passion may have strained, it must not break our bonds of affection. The mystic chords of memory will swell when again touched, as surely they will be, by the better angels of our nature.(Abrahan Lincoln, discurso de posse, 04/03/1861)

Se “Lincoln”, de Steven Spielberg (2012) traz alguns desses questionamentos por meio da reconstituição da trajetória política do ex-presidente americano, “A outra história americana”, apesar de anterior, sela a contemporaneidade da sua luta por meio do fechamento do filme com um assassinato motivado pelo ódio puro e simples que vai sendo encenado em câmera lenta sob o texto do discurso presidencial. Ainda mais se consideramos o fato de que, desde 2008, a nação americana vive tempos de aparente renovação do cenário dos conflitos raciais devido o peso simbólico da eleição do primeiro presidente negro da sua história. Um sonho que, certamente, o próprio Lincoln poderia alimentar.
O ódio é um peso e é o principal combustível do racismo. Assim, como bem nos lembra o filósofo Cornelius Castoriadis, o mecanismo do racismo não pode ser vencido se não o compreendermos inserido na construção de uma dialética da alteridade alimentada por este combustível (o ódio) que quase sempre é acompanhado de uma postura violenta. Nas palavras do autor, num trecho já mencionado num outro artigo neste blog (cf. Os paradoxos do conceito de raça):

“o racismo participa de alguma coisa muito mais universal do que aceitamos admitir habitualmente. O racismo é um fruto ou um avatar particularmente agudo e exacerbado – eu estaria inclusive tentado a dizer, uma especificação monstruosa – de um traço empiricamente quase universal das sociedades humanas. Trata-se, em primeiro lugar, da aparente incapacidade de se constituir como si mesmo sem excluir o outro; e da aparente incapacidade de excluir o outro sem desvalorizá-lo e, finalmente, odiá-lo.” (Cornelius Castoriadis, Reflexões sobre o Racismo.)

Por isso, o seu combate é extremamente difícil, por mexer com pressupostos muito mais emocionais do que racionais.
E é aí que deveria se apresentar o Estado. Além de promover políticas de inclusão (uma de suas prerrogativas básicas, fundamentais), a intervenção de um Estado moderno seria muito mais eficaz  se fosse operada pelos mecanismos preventivos da formação, educação e incentivo à cidadania. O difícil trabalho de mudança cultural. Até lá, os americanos serão forçados a conviver com o fantasma de explosões de violência cujo estopim é a exclusão gerada pelo racismo.
Enquanto esta dinâmica for sustentada e, mesmo que indiretamente, apoiada por mecanismos de Estado (com uma polícia truculenta e violenta, por exemplo; ou com tribunais que não cumprem de forma isenta sua função na manutenção dos pressupostos democráticos), esta luta ficará ainda mais difícil. E quantas “Fergusons” mais teremos que testemunhar?

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