Com a guerra em Gaza se arrastando, EUA expandem sua presença militar no Oriente Médio

O tenente-coronel Jeremy Anderson ergueu o nariz de seu C-130 da Força Aérea dos Estados Unidos e despejou 16 pallets carregados com contêineres de ajuda alimentar emergencial para fora do avião sobre o norte de Gaza.

A milhares de quilômetros de lá, na costa do Iêmen, caças de combate e helicópteros de ataque americanos decolavam da plataforma de voo do porta-aviões USS Dwight D. Eisenhower, com frequência em intervalos de poucos minutos, para combater milicianos houthi que atacam navios no Mar Vermelho.

Em ambos os lugares, militares americanos afirmaram que suas missões foram inesperadas, mudando conforme a Casa Branca movimentou-se rapidamente para conter uma disseminação maior da guerra Israel-Gaza. Mas agora, juntamente com um grupamento do Exército americano a caminho de Gaza para construir um píer flutuante, esses soldados tornaram-se firmemente parte de uma presença militar dos EUA em expansão no Oriente Médio. O presidente Joe Biden esperava retirar a ênfase na região — onde o envolvimento americano foi com frequência devastador e custoso.

“Isso definitivamente não era algo que eu antecipava”, afirmou Anderson na terça-feira, ao retornar para o aeroporto jordaniano do qual ele vinha decolando para levar a ajuda aérea. “Nós nem desconfiávamos que haveria o 7 de outubro e que nos dedicaríamos a ajudar pessoas durante uma crise real.”

No Mar Vermelho, onde combatentes houthi do Iêmen têm atacado navios para protestar contra a guerra de Israel, o almirante Marc Miguez afirmou que o grupo de porta-aviões de ataque liderado pelo Eisenhower tinha previsto originalmente transitar pelo Oriente Médio, receber dignatários estrangeiros e participar de exercícios militares.

Antes da guerra, “nós faríamos uma escala no porto do Bahrein, íamos receber um rei, tínhamos vários compromissos na agenda”, afirmou Miguez, comandante do grupo de ataque. Em vez disso, suas forças estão interceptando drones e ataques de mísseis balísticos dos houthis em uma das vias marítimas mais estratégicas do mundo e atacando o grupo dentro do território iemenita.

“Nós ficaremos aqui o quanto for necessário”, afirmou ele.

A guerra em Gaza e o agravamento da crise humanitária no enclave ensinaram a Biden uma lição que muitos presidentes americanos já aprenderam no passado: não é fácil sair do Oriente Médio.

Após o arrefecimento das “guerras eternas” no Iraque e no Afeganistão, o governo dos EUA queria voltar sua atenção e direcionar seu poder geopolítico para conter a agressão russa e o expansionismo chinês. Mas na manhã de 7 de outubro, quando combatentes do Hamas mataram cerca de 1,2 mil pessoas dentro de Israel, mudou isso tudo.

Agora, o Pentágono se encontra cada vez mais envolvido no conflito mais intratável da região, um papel em expansão que reflete tanto o apoio ferrenho de Biden a Israel quanto sua frustração crescente com a maneira que os americanos foram levados à guerra subsequente.

Mais de 31 mil pessoas foram mortas em Gaza desde o início da guerra, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, e com a recusa de Israel de atender aos pedidos de Washington para levar mais ajuda ao enclave, há poucos sinais do fim das missões militares dos EUA.

Anteriormente este mês, o Exército despachou embarcações, incluindo o SP4 James A. Loux, o Monterrey, o Matamoros e o Wilson Wharf, de Virgínia para o Mar Mediterrâneo, como parte de um esforço para entregar até 2 milhões de refeições diariamente para Gaza pelo mar.

Autoridades americanas afirmam que os militares ajudarão a estabelecer um píer flutuante e um passadiço que poderão facilitar a chegada de ajuda a Gaza sem colocar soldados em terra.

“‘Hotel California’ deveria ser a música oficial do governo Biden”, afirmou Aaron David Miller, pesquisador sênior do Fundo Carnegie para a Paz Internacional e ex-diplomata americano dedicado ao Oriente Médio. “Você pode fazer check-out quando quiser, mas nunca consegue partir.”

O Pentágono começou a enviar ativos militares para a região quase imediatamente após o 7 de Outubro, inicialmente para dissuadir o Hezbollah no Líbano, o mais poderoso aliado do Irã, de abrir uma nova frente de combate contra Israel, assim como para evitar uma guerra maior.

O Pentágono deu o passo comum de posicionar dois porta-aviões, além do Eisenhower, o USS Gerald R. Ford, no Oriente Médio. E também acionou embarcações do grupos anfíbios de prontidão Bataan para a costa de Israel e anunciou que enviaria um esquadrão de caças de combate F-16 e sistemas de defesa antiaérea adicionais para a região.

Os movimentos representam um incremento na atividade militar dos EUA na área, mas permanecem até aqui remotamente distantes da presença vastamente maior que o Pentágono aplicou no auge de suas guerras anti-insurgência do pós-11 de Setembro, quando mais de 160 mil soldados foram enviados para o Iraque e cerca de 100 mil para o Afeganistão.

Hoje, além de suas bases maiores e mais antigas no Qatar, no Bahrein e nos Emirados Árabes Unidos, os EUA têm cerca de 4 mil soldados na Jordânia, 2,5 mil no Iraque e 900 na Síria. E as operações permanecem relativamente modestas, sem aumento significativo na presença militar em campo desde o 7 de Outubro.

A Casa Branca é enfática ao declarar que o trabalho do Pentágono nas margens da guerra não evoluirão para um papel de combate. Mas não há como negar que os militares a bordo de aviões e navios de guerra americanos correm perigo num teatro tão volátil quanto o Oriente Médio.

No Iraque e na Síria, o conflito em Gaza reacendeu uma campanha conduzida havia muito em fogo baixo por grupos aliados do Irã para infligir danos nas forças americanas. Os grupos lançaram mais de 170 ataques contra essas forças desde 7 de outubro. Em 28 de janeiro, um ataque de drone matou três militares na Torre 22, uma pequena base de apoio na Jordânia.

Em resposta, o Pentágono lançou um ataque em grande escala e matou um líder de milícia importante em Bagdá, restaurando alguma dissuasão e uma calma intranquila.

No Mar Vermelho e em torno da Península Arábica, contudo, os EUA e outras nações têm tido dificuldades para conter totalmente os ataques dos houthis, apesar de dois meses de ataques contra bases de lançamento de mísseis e infraestruturas do grupo.

Desde outubro, militantes iemenitas atacaram embarcações comerciais e militares em mais de 60 ocasiões, desviando o tráfego marítimo, aumentando custos e afundando um navio cargueiro, o Rubymar. Eles também combateram diretamente forças americanas, entre as ações, disparando contra helicópteros da Marinha que atendiam a um pedido de socorro de uma embarcação comercial.

Na semana passada, Miguez e outros comandantes a bordo do Eisenhower afirmaram que a “atividade” dos houthis vinha diminuindo nas semanas recentes. O grupo opera menos livremente, afirmaram eles, e os ataques são menos ostensivos.

Ainda assim, Miguez descreveu o ritmo das operações como “persistente”.

Mesmo as entregas de ajuda por via aérea implicam em riscos, afirmou Anderson, citando o espaço aéreo movimentado sobre Gaza, conforme aeronaves dos EUA, do Egito, da Jordânia, da Bélgica e dos Países Baixos decolam da mesma pista para levar os suprimentos.

“Às vezes há 9 ou 10 aviões em um espaço muito limitado”, afirmou Anderson. “Os controladores israelenses (de tráfego aéreo militar) são muito bons.”

As Forças Armadas de Israel afirmaram que estão cooperando com os voos de entrega de ajuda evitando conflitos com seus próprios caças de combate e helicópteros que sobrevoam Gaza. A Coordenação de Atividades do Governo dos Territórios (COGAT), a agência militar israelense responsável por coordenar a ajuda dentro de Gaza, afirmou que está “envolvida” em inspecionar as cargas antes das entregas, mas não informou onde ocorrem as inspeções.

Em Israel, as reações ao novo papel dos militares americanos em Gaza foram mistas.

Algumas autoridades israelenses afirmaram privadamente que veem com bons olhos a iniciativa americana, conforme buscam alternativas à ajuda manipulada pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNWRA), que Israel acusa de cumplicidade com o Hamas. Israelenses linha-dura argumentam que a maior parte da assistência a Gaza é desviada pelo grupo militante, permitindo-lhe seguir lutando.

Os aviões americanos têm soltado os suprimentos literalmente sobre as cabeças de manifestantes que tentam bloquear a entrada de caminhões com ajuda ao território. Mas o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, tem se calado a respeito dos envios.

Uma fonte israelense familiarizada com discussões que ocorrem dentro do gabinete de Netanyahu afirmou que o premiê está pisando em ovos para não enfurecer sua base conservadora nem provocar ministros de direita. “Ele sabe que qualquer ajuda entrando em Gaza é problemática para a opinião pública, da qual ele precisa”, afirmou a pessoa.

Alguns israelenses consideram as atividades militares dos EUA em torno do conflito um subproduto da frustração de Biden com o fracasso de Israel em aliviar a crise humanitária. E temem estar um passo mais próximo de possíveis restrições de Washington à assistência militar a Israel.

“Isso é um tapa na cara de Netanyahu pessoalmente”, afirmou o ex-subconselheiro de segurança nacional em Israel Chuck Freilich, que atualmente leciona ciência política na Universidade Columbia. “É o aliado-sênior dando de ombros para o aliado-júnior e fazendo o que bem entende”, afirmou ele. “Se (Netanyahu) não mudar de curso logo, o dano poderá ser severo.”

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