No top 10 dos filmes que mais renderam em bilheterias no mundo, Avatar (2009) é o primeiro e, Titanic (1997), o segundo. Todos os outros oito compartilham de duas características. A primeira é que foram lançados na década atual. A segunda, que são filmes de marca, com personagens conhecidos e parte de um conjunto. Dois Guerra nas Estrelas, Jurassic World, Vingadores, Harry Potter e Pantera Negra. Esta semana sai mais um dos Vingadores. Não costumamos pensar em Hollywood como indústria de tecnologia — mas poucos negócios estão em um processo de transformação tão perceptível por conta do digital.
Na verdade, dois processos simultâneos. A qualidade das TVs deu um salto na era das telas finas, a banda larga deu outro, e isto fez com que ambas – TV e internet – fossem ligadas. Streaming. O streaming, puxado principalmente pela Netflix, tirou público do cinema. O primeiro processo foi a necessidade de descobrir uma nova fórmula para atrair gente. E, o segundo, buscar como se faz para competir pela tela de casa.
No último mês, saiu um livraço que conta parte desta história. É The Big Picture, assinado pelo repórter Ben Fritz, do The Wall Street Journal, que mergulhou nos e-mails da Sony Pictures vazados por um hacker. Lá, descobriu a briga interna de um estúdio que, tendo feito imenso sucesso na primeira década do século, perdeu a pegada na segunda.
Quem estava no comando da Sony à época era Amy Pascal, hoje produtora. Seu último filme foi o excelente The Post, de Steven Spielberg, com Tom Hanks. É o tipo de trabalho do qual gosta: um grande ator, um grande diretor. O talento humano custa caro, mas as produções, não. Com dez assim no ano, fazia-se um estúdio lucrativo. The Post fez algum dinheiro — mas filmes do tipo, hoje, em geral dão prejuízo.
A Sony teve nas mãos uma marca: o Homem-Aranha. Mas o tratou dentro desta fórmula: Tobey Maguire, o ator, custava caro. O diretor Sam Raimi, idem. E, conforme foram para a segunda edição e a terceira, o preço de ambos só aumentou. O lucro, apesar das boas bilheterias, diminuiu.
O oposto da Sony é a Disney. É dona, além de seus próprios personagens, dos selos Marvel e Star Wars. E o mérito é do CEO Bob Iger, que enxergava as marcas pelo que eram. Quando Homem de Ferro, o primeiro filme com o selo Marvel Studios saiu, o ator Robert Downey Jr estava em baixa. A editora de quadrinhos trouxe, para o cinema, a fórmula dos gibis: os personagens entram uns nas histórias dos outros. O público do cinema reagiu. Uma história bem contada, muitos efeitos visuais e a garantia de que as personagens são sempre as mesmas, o universo é conhecido, bastam. Quem atua é irrelevante.
É como se o espírito das séries batesse no cinema. O importante para quem paga o ingresso é a continuação da história e esta sensação de tomar parte de uma mesma cultura. É um fenômeno que estimula que os mais entusiasmados se fantasiem, passem horas discutindo meandros obscuros das histórias nas redes. Nem todos os espectadores são assim — a maioria não é. Mas é mostra do quanto este tipo de filme envolve.
O sucesso isolado da Disney nestes últimos anos lhe permitiu a compra da concorrente Fox. E, a partir daí, garante um assento no negócio do streaming. Nenhum outro da indústria audiovisual pré-1940, nos EUA, está tão preparado para enfrentar a Netflix em seu jogo. Esta guerra, Disney versus Netflix, provavelmente vai marcar os próximos dez anos. Porque são estes dois — mais do que HBO, Amazon ou Apple — que dominaram globalmente os últimos dez.
http://link.estadao.com.br/noticias/geral,quando-o-digital-muda-o-cinema,70002285668