‘Somos a favor de regulação’, diz Google

Ao revisar o trabalho de alguns de seus pesquisadores sobre o uso de inteligência artificial (IA) para leitura labial ano passado, o Google chegou a um dilema: publicar ou não o material, que trazia um avanço que poderia ajudar milhões de pessoas que sofrem com problemas auditivos, mas também poderia ser usado para vigilância em massa? Após algum debate, o artigo foi publicado, com a ressalva de que seu uso era propício para pessoas próximas uma das outras. “A avaliação foi que, nesse caso, os benefícios seriam muito maiores que os riscos”, disse Kent Walker, vice-presidente de assuntos globais e diretor jurídico do Google.
De acordo com o executivo, esse tipo de conversa tem sido cada vez mais frequente dentro da companhia, à medida que a gigante de internet busca se adaptar ao cenário de maior influência da tecnologia na vida das pessoas e também de maior atenção sobre os efeitos e limites da atuação das grandes empresas do setor. Nesse sentido, a tendência é que mais e mais leis surjam ao redor do mundo nos próximos meses e anos. “Existe uma dança entre política e tecnologia e ela pode seguir para sempre. E cada capítulo tem a sua música, que muda de tempos em tempos”, disse.
No Google desde 2006 – e com passagens por eBay, AOL, Netscape e o Departamento de Justiça dos EUA – Walker assumiu há quase um ano o papel de face pública da companhia para temas como inteligência artificial e relação com governos. O executivo, que estará no Brasil esta semana para participar do evento anual do Google e se encontrar com parceiros da companhia, defende o conceito de regulação inteligente (smart regulation), ou regras que sejam construídas com entendimento correto da questão que se pretende atacar, construídas por meio de conversas com diferentes interessados no assunto e que tenham em mente até eventuais efeitos colaterais que possam surgir. Nesse sentido, ele cita como um bom exemplo o Marco Civil da internet, que completou cinco anos em abril. “Foi construído sem estar preso a tecnologias ou ferramentas específicas e foi flexível o suficiente para lidar com novos avanços. O ambiente da internet se desenvolveu bem, foi bom para os pequenos negócios, para os consumidores e para a sociedade em geral”, disse.
Sobre a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada no Congresso semana passada, Walker afirmou que ainda existem algumas incertezas a respeito da implementação do que está previsto na lei, mas que o texto, que está alinhado com o ordenamento europeu (a General Data Protection Regulation, o GDPR), tem um papel importante de criar um regulador especializado que vai dar mais clareza sobre a aplicação das novas regras. “Nós somos a favor de regulação sobre privacidade. Acredito que seja importante para os consumidores entender como as empresas lidam com essa questão. E se você tiver um marco legal que possa ajudar com isso, acho que é positivo”, disse.
A criação de novas regras para lidar com tratamento de dados e outras condutas das empresas de tecnologia tem sido um tema recorrente ao redor do mundo, frente à crescente dependência das pessoas em relação à tecnologia e também ao poderia econômico que as maiores empresas do setor têm ganhado. Alguns especialistas argumentam, no entanto, que novas leis podem acabar tendo efeito contrário, sufocando não os líderes – que são capazes de se adaptar aos novos cenários – mas empresas em fase inicial de desenvolvimento, ou que ainda nem foram criadas, que sofreriam com barreiras antes inexistentes. O próprio Google já recebeu duas multas bilionárias na União Europeia que pouco efeito tiveram sobre os seus resultados.
Walker não comentou o efeito para as gigantes, mas disse avaliar que para evitar um efeito negativo sobre os novos negócios é preciso se preocupar com o custo envolvido com eventuais adequações e ter regras criadas para atingir objetivos bem delimitados. “Assim, você estará realmente lidando com as áreas problemáticas, não criando uma infraestrutura que toda nova empresa tem que gastar muito tempo esforço para se adequar”, disse. Na avaliação do executivo, o entendimento dos reguladores tem melhorado nos últimos tempos, com a chegada às posições de liderança de novas gerações que cresceram dentro da internet e estão mais confortáveis com os assuntos do setor.
Alvo de críticas por seu papel na disseminação de notícias falsas e de discurso de ódio, o Google tem investido pesado para coibir abusos, segundo Walker. “Quando começamos a usar inteligência artificial para detectar conteúdo nocivo no YouTube, alguns anos atrás, conseguíamos identificar 10% do material usando máquinas. Hoje esse percentual chega a 70% ou 80% e um vídeo é tirado do ar antes de ser visto por mais de 10 pessoas. Acredito que estamos fazendo progresso real”, disse. Para o executivo esse é um trabalho que nunca estará encerrado.
Nas últimas semanas, o Google se viu no fogo cruzado da disputa comercial entre China e EUA. Para pressionar os chineses na negociação, o presidente Donald Trump assinou um decreto que proibiu empresas americanas de fazerem negócios com a Huawei, um dos maiores fabricantes de equipamentos de telecomunicação e segunda maior vendedora de smartphones do mundo. Com o bloqueio, a fabricante, que usa o sistema operacional Android, do Google, ficou impedida de entregar atualizações do software aos seus clientes – o que poderia atrapalhar os negócios do Google. Poucos dias depois o departamento de comércio dos EUA concedeu um prazo adicional de três meses para que a Huawei e seus parceiros se ajustem à medida.
De acordo com Walker, ainda é muito cedo para fazer comentários, porque as interpretações dessas regras e como elas devem ser aplicadas estão sendo avaliadas. “Estamos estudando com cuidado e é claro que precisamos seguir as leis que são colocadas. Mas queremos ser um agente responsável dentro do ecossistema e estamos tentando nos ajustar”, disse.

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