Residência é novo modelo de trabalho para executivos

Até os 37 anos, Guilherme Reichmann seguiu o que a cartilha da carreira bem- sucedida prega na escola de gestão tradicional. Graduação em engenharia, estágio em uma grande organização, analista de uma multinacional, trainee, trabalho em consultoria e MBA nos Estados Unidos. Entendeu a lógica que o faria crescer – e assim a seguiu. Subiu degraus nas hierarquias, ganhou as promoções previstas pelas organizações e, em 2014, assumiu a estratégia do grupo O Boticário.
Mas Reichmann buscava um “pouco mais de caos”. “Eu estava em uma empresa nota dez, com muitas conquistas, mas percebi que queria mudar de rota”, diz. “Sabia para onde estava minha mira, só não sabia onde estava o alvo”. Sua mira: trabalhar em um local onde a tecnologia fosse o “core”, o centro do negócio. Ele avisou a liderança do O Boticário e planejou a saída com quatro meses de antecedência. Do lado de fora, ficou alguns meses sem emprego. Repensou a carreira e tentou encontrar seu novo alvo conversando com várias empresas. Entre elas, estava o grupo Movile, dona da Sympla, Wavy e investidora do iFood. “Foram várias conversas, inclusive com o CEO, até acharmos um ponto em comum. Eles estavam buscando gente para crescer, só não sabiam para qual função”.
Desde agosto, seu LinkedIn traz a definição de “Entrepreneur in Residence”, um EIR (empreendedor residente, na tradução livre). Recebeu uma oferta de salário que considerou competitiva. Trabalha sem cargo definido, rotina pré-estabelecida e com a instabilidade de desconhecer o seu futuro no curto prazo. Vive uma espécie de residência que, embora remunerada, não tem data certa para acabar – como programa ou efetivação.
No primeiro mês, viajou aos escritórios da empresa pelo país, aprendeu sobre métodos, processo, cultura e tecnologia e conheceu os líderes de cada área. Sua nova rotina, que não tem agenda fixa, esbarrou com a de Daniel Bergman, com quem já havia trabalhado no início da carreira. Com a mesma idade, Bergman buscou transformação similar ao ingressar na Movile. Ele foi residente por três meses em 2018.
“Já havia trabalhado em funções distintas, de empresas de tamanhos e áreas diferentes. Naquele momento, queria construir algo de impacto, mas não sabia exatamente o quê. Com a residência, ganhei novos aprendizados, além da chance de construir aquilo que se tornaria a minha função”, diz Bergman. Desde outubro de 2018, ele é um funcionário do grupo e usa sua experiência anterior em meios de pagamentos e o que aprendeu dentro nas várias áreas da holding para tocar um time de 75 pessoas na MovilePay.
O programa de residência do grupo surgiu há um ano e meio, em uma iniciativa do RH com o apoio do CEO, Fabricio Bloise. “É uma forma de a empresa encontrar novos caminhos, potencializar oportunidades existentes e atingir a meta de impactar um bilhão de pessoas no mundo”, diz Luciana Carvalho, diretora de gente do grupo.
Diferentemente de um trabalho temporário ou por projeto, os residentes não têm a obrigação de bater metas, entregar um serviço ou resolver um problemas. “Eles não são donos de nada no primeiro momento”, diz Luciana. Quatro executivos passaram pelo programa (dois concluíram e foram contratados, outros dois estão realizando, Guilherme e Patrick Hruby, ex-Facebook), A inspiração, segundo Luciana, veio dos fundos de venture capital e da varejista norte-americana Target.
O Vale do Silício fala de “entrepreneur-in-residence” há pelo menos uma década. O primeiro EIR do Google, por exemplo, foi Craig Walker, contratado em 2010 para a área de venture capital da companhia, então chamada de Google Ventures. “É um modelo comum nos fundos porque, enquanto os empreendedores tentam criar sua próxima startup podem levar sua experiência para as empresas investidas ou trabalhar em tarefas especiais”, diz o sócio de um fundo de venture capital estrangeiro que possui investimentos significativos no Brasil. Este é o modelo convencional de EIR no venture capital e que pode terminar em um investimento na startup criada pelo residente.
Mas investir não é uma obrigação do fundo. Cada caso é um caso. E há vários casos, de múltiplos formatos e tempo de duração, fora dos fundos. O EIR chegou às universidades americanas – Kellogg e Harvard, por exemplo, possuem programas – e às grandes companhias, com o intuito de manter a circulação de ideias e o fluxo de inovação constante.
Dependendo do formato e do objetivo do programa, a tradução de EIR muda de “entrepreneur” para “executive”. Mas o espírito de intraempreendedorismo é o mesmo. A Target estruturou seu programa em 2015, contratando três profissionais com perfis distintos daqueles que costumava recrutar para, como definiu no site oficial do programa, “trabalhar de uma forma diferente e criar novos negócios para crescer”. Um deles, comentando a experiência em seu LinkedIn, disse que durante o EIR sugeriu a criação de uma plataforma de e-commerce, testou protótipos, liderou um time em Sunnyvale, na Califórnia para construir novas tecnologias e ajudou a atrair investimentos.

https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/09/30/residencia-e-novo-modelo-de-trabalho-para-executivos.ghtml

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