Um texto a mais sobre as manifestações na rua

Por Pedro de Santi
Escrevo às 21:30 do dia 17 de junho, em meu consultório, janela para a Paulista. Muito aliviado. Até aqui as manifestações alastradas pelo país não tiveram o mesmo rumo daquele da última quinta-feira. Este é um texto para este dia.
A alegria de estar numa manifestação política como há tanto tempo não víamos (e, ao mesmo tempo, como nunca vimos) está travada pelo temor da explosão de violência. Sabemos que de todos os lados (não são só dois) há quem esteja louco para ser provocado e, assim, liberar seu ódio sob o álibi da “reação”. Reunir tanta gente é sempre criar o risco de acender o estopim de algo sobre o que se perde o controle.
Toda manifestação tem que, como condição para ser notada, invadir fronteiras, transgredir espaços, perturbar de alguma maneira a ordem. Neste sentido, há uma violência intrínseca à exposição. Aquele que sente a ação do outro, sente-se invadido em alguma medida. As medidas de invasão e capacidade de absorção ante o outro dão a medida de nosso respeito, tolerância e condição de convívio. Como na velha imagem dos dois porcos-espinho num dia de inverno. Busca-se proximidade pelo calor, mas a aproximação excessiva faz com que um fira o outro. E, como disse Carlos Frederico Lucio em post da semana passada, a maior parcela de responsabilidade em ser cauteloso e saber negociar cabe ao Estado.
Hoje à tarde, um aluno postou em meu perfil do Facebook uma matéria sobre comportamento explosivo das multidões, dizendo ter se lembrado de uma aula minha. Duas delas vêm-me à mente. Uma sobre o comportamento das massas: o conceito de massa nasceu na revolução francesa, em contexto político e revolucionário. Vinda deste contexto, a massa foi definida como louca e infantil, com alto poder de explosão. Ao longo do tempo, em grande medida as massas sofreram uma inflexão que as afastou do campo político para o do entretenimento, para alívio de quem quer que esteja no poder. Conto aos meus alunos que participei do comício das diretas em 1984; dos comícios pela eleição (ainda que indireta) do Tancredo, em 1985; pelo impeachment do Collor, em 1992. Isto com algum desdém por esta geração, que parece só se preocupar com coisas muito imediatas para si: seu trabalho, sua família, sua balada. Multidão, só em estádios e megaeventos.
Outra aula (conjunto delas) trata do que chamamos de cultura do narcisismo. Conta-se que depois de um período de relativo otimismo, do fim da segunda guerra ao fim dos anos 60, quando as pessoas no ocidente predominantemente sentiam que podiam mudar o mundo- com seu voto, sua banda, sua peça- seguiu-se um período de estremo pessimismo. Passamos a considerar que não tínhamos mais condição de compreender e atuar sobre o mundo. Daí, teríamos nos voltado para tudo aquilo que nos parece ao alcance de nosso braço: nosso corpo, nossa família, etc. Como já disse em outros posts neste Blog, cultura do narcisismo não é uma cultura do egoísmo, mas uma cultura da defesa narcísica ante um mundo traumático.
Este mundo apolítico e super individualista foi chamado de pós-moderno, hiper-moderno, líquido etc. Tão difícil é respirar e conviver nele que temos todos tentado achar saídas.
De 2000 para cá, alguns caminhos se desenham. Houve todo um debate em torno da questão do aquecimento global, por exemplo, que trazia este mote. Não tenho condições técnicas de avaliar se causamos de fato o aquecimento do planeta. O que sempre considerei interessante na questão foi alimentar a ideia de que nossa ação fez diferença no planeta. Se “conseguimos” estragar, quem sabe conseguimos trabalhar também num sentido reparador. O que se chamou um dia ecologia e depois sustentabilidade pode restituir esta noção, o seria uma saída para o fechamento narcísico e reabilitação da ação política. Outro caminho crescente é o renascimento de um conservadorismo de coloração religiosa, em busca de valores perdidos, mesmo sob o preço de perdas de tantas conquistas individuais do mundo moderno. Depois de décadas de relativo silêncio- talvez pelo constrangimento relativo ao período do golpe militar- a direita ganhou seus porta-vozes na mídia; é claro que isto é importante e legítimo.
Pois bem, as pessoas estão de volta às ruas. Os jovens acharam neste momento uma voz e estilo. O que acontece agora nas ruas (ouço agora, enquanto escrevo) ainda está muito fresco, não sabemos onde vai dar. Mas é interessante, muito interessante. E potencialmente novo. Há de todos os lados (repito, não são só dois) quem tente resgatar o imaginário emblemático do século XX, como imagens de luta contra a ditadura, maio de 68, antigas canções, protesto contra um governo específico etc. Há também partidos que tentam tirar proveito, ao procurar culpar o governador de cada estado; o que vai por água abaixo em termos nacionais, uma vez que estados distintos tem governadores de partidos distintos. Quem hoje está no poder (PT e PSDB, em especial), há 30 anos eram os expoentes da luta contra a ditadura.
Há muito discurso velho, como aquele pueril que é contra toda a forma de ordem, ou como o do governador que disse que- tendo convocado a tropa de choque, com o resultado que poderia esperar- iria “apurar eventuais excessos”…
Mas me parece que o essencial é o que é atual: o fato de que as manifestações não têm um centro de comando, ou uma demanda específica. Ela brota das redes sociais, atrais as mais diversas pessoas com as mais diversas motivações. Há um sentido de insatisfação geral e felicidade por estar na rua, pertencendo a algo grande, novo e potente. Não se sabe com quem negociar, não se sabe o que oferecer para que o movimento se contente e detenha. É óbvio que o estopim da passagem de ônibus foi transcendido. O que se sabe é que todos temos câmeras e que a reação truculenta das tropas de choque (provocadas ou espontâneas) são instantaneamente difundidas pelo mundo, gerando reações como as que tivemos na última semana. Os expedientes tradicionais de reação não se aplicam.
Em minha fantasia, começo a pensar que o recado geral é o do absoluto distanciamento dos governantes e suas pautas eleitoreiras e as demandas das pessoas. Entre as formações de base para 2014, corrupção endêmica, investimento em estádios em detrimento de infraestrutura, visibilidade mundial trazida pela copa das confederações, o recado vale para todas as instâncias: governos, faculdades, famílias. A cisão entre o “andar de cima e o de baixo” faz com aquilo que não é ouvido fermente, coagule, cresça invisivelmente até, de alguma forma, fora do script, exploda.
Talvez esta característica difusa e generalizada das manifestações leve à sua dispersão, certamente alguns tentarão capitalizar para si os frutos deste movimento, talvez o movimento cresça e se transforme não se sabe ainda em que. Mas o que mais interessa o frescor deste momento, o acontecimento brotando e crescendo. Este é o momento humanamente mais rico, penso. Sem ter clareza sobre como analisar ou saber o que esperar, estamos todos um tanto atônitos, participando e acompanhando.
Na dúvida, olho ainda para um velho farol. Enquanto o Jornal Nacional ignorar, criticar ou subdimensionar, tudo bem; quando eles elogiarem e mandarem uma equipe sorridente de reportagem, estará na hora de mudar de lado.
Com o alívio de que, neste momento específico, não há violência, começo a me permitir ficar feliz pelo que está acontecendo. Sigo preocupado com provocações de todos os lados, que podem descaracterizar o que há de vitalidade no movimento.
A imagem do dia, para mim: manifestantes em Brasília sobre o Congresso Nacional. Uma prima, arquiteta e advogada bem observou (pelo Facebook, que nunca foi tão bem usado): pena que o Niemeyer não viveu para ver isto.

Comentários estão desabilitados para essa publicação