Tom e Jerry politicamente incorretos

Carlos Frederico Lucio

Nesta última semana, a Amazon.com e a Apple (via iTunes) reacenderam a discussão sobre o politicamente correto ao divulgar um anúncio no seu portal de vendas dos vídeos do clássico desenho “Tom & Jerry”, alertando os internautas sobre possíveis interpretações preconceituosas de caráter racial ou étnico. Em suma, o conteúdo afirma:

“Os curtas de Tom e Jerry  podem retratar preconceitos que uma vez eram comuns na sociendade estadunidense. Tais representações eram errôneas naquela época e continuam erradas hoje em dia. Enquanto elas não representam a visão da Warner Bros. da sociedade atual, esses desenhos estão sendo apresentados da maneira como foram criados. Fazer de outra forma seria ignorar que esses preconceitos jamais existiram.”

Isso não é propriamente uma novidade. Há alguns anos (2004), quando a série foi lançada em DVD, a atriz Whoopi Goldberg protagonizou um vídeo introdutório à Tom and Jerry Spotlight Collection em que ela discorre uma advertência aos compradores sobre esses problemas. Quem é fã do desenho (principalmente os quarentões e acima), lembram-se da personagem negra e gorda, uma empregada da casa (Mammy Two-shoes) que nunca aparecia com o rosto e que quase sempre era colocada em situações ridicularizantes pela dupla. Além disso, há episódios registrados em que o ratinho Jerry é pintado de negro, numa clara alusão ao período áureo do racismo norteamericano nas telas em que personagens negros eram interpretados por atores brancos com rostos pintados (cuja expressão clássica é o ator Al Johnson).

Evidentemente que, antes de pretender reacender a discussão sobre o politicamente correto nos desenhos animados (que, neste caso aqui específico, foi mais consequência que causa), o que essas empresas almejaram foi a precaução contra a eventual indústria dos processos judiciais que assola a sociedade americana contemporânea.

Mas fica a questão para pensarmos: independentemente de relativizarmos essas práticas com relação à sua época (sob o risco de cairmos num juízo anacrônico e injusto se não o fizermos), a discussão sobre o politicamente correto (e o seu outro extremo, o politicamente incorreto) nos leva a ponderar quais os limites entre a simples “piada” e a “humilhação”, o “vilipêndio”? Esta questão é muito semelhante àquela que fazemos sobre um fenômeno antigo, mas com uma denominação relativamente nova que é o “bullying“.

Esta não me parece uma questão tão simples assim de ser resolvida. O politicamente correto é uma expressão que começou a ganhar força a partir do final da década de 1980 e se consagrou na seguinte. Com o avanço das conquistas antirracistas, antissexistas e anti toda forma de preconceito e discriminação no campo social, desta vez foi a linguagem o alvo de acusações ao ser entendida como o principal meio de veiculação de preconceitos. Assim, palavras como o verbo “judiar” (que remete ao sofrimento imputado a Jesus Cristo pelos judeus) ou “denegrir” (que associa a ideia de negro a uma conotação negativa), assim como tantas outras, passam a ser alvo de críticas e reavaliações. Até aí, nenhum problema. Afinal, uma reflexão sobre as relações entre as “palavras” e as “coisas” – e suas consequências sociopolíticas, assim como a sua historicidade – desde há muito ocupa o cerne do debate acerca das construções simbólicas inconscientes que fazemos quando as utilizamos (o que já foi bem tematizado pela filosofia, psicanálise, antropologia e linguística).

Da reflexão sobre os eventuais problemas de preconceito, estereótipo e discriminação à concretização de um patrulhamento ideológico exacerbado é um pulo. De repente, com o avanço e consolidação da ideologia do politicamente correto, como uma verdadeira caça às bruxas, cria-se uma perseguição ao que passa a ser considerado incorreção em que tudo vira alvo de crítica e ataque. Como os antigos inquisidores que viam bruxas em todo canto, quase nada escapa aos olhares supostamente atentos dos guardiões do politicamente correto. Começa a crescer uma sanha moralizante intolerante e as deturpações do combate ao que seria de fato o problema (atos discriminatórios, racistas, sexistas e congêneres) ganha a cena. Inaugura-se uma hipertrofia do formalismo que, aos poucos, vai gerando uma tensão no campo social, só que ao revés do problema anterior. O tiro parece ter saído pela culatra.

Isso vai gerar há bem pouco tempo o movimento do politicamente incorreto, que aos poucos vai acabar caindo na contramão do exagero da permissividade. É como se, na reação aos arroubos da defesa da dignidade promovida inicialmente pelo politicamente correto, voltássemos ao estágio anterior: não são raras hoje as pessoas (inclusive renomados intelectuais) que vem defendendo o direito de ser politicamente incorreto contra o que classificam como a “babaquice” do politicamente correto. Mas isso (e todos os desdobramentos daí decorrentes) é uma outra discussão.

O problema é ainda aumentado quanto, da esfera da linguagem, o politicamente correto avança terreno sobre as artes em geral, em particular aquelas produzidas e veiculadas pelos meios de comunicação: filmes, músicas, literatura e, sobretudo, os tradicionais programas humorísticos que quase sempre se valeram dos esterótipos (principalmente negros, mulheres e homossexuais) para se afirmarem como “engraçados”. E, todos sabemos, do riso espontâneo ao escárnio, deboche, humilhação é um pulo. E isso está tão arraigado em nossas mentes que aprendemos desde a “inocência” desses cartoons como é o caso de Tom e Jerry (e tantos outros).

A questão Apple/Amazon me parece um pouco evidente: vejo-a mais como uma precaução para evitar possíveis ações judiciais por injúria (racial, étnica, gênero etc.). Que o efeito colateral disso seja o de retomar o debate acerca do politicamente correto, parece-me uma leitura pertinente e apropriada. O que é preciso estar atento, na minha opinião, é para algo que a sociedade parece não valorizar muito, mas que, nesses casos, é preciso ter sempre em mente: o “bom senso”! Dito assim, rapidamente, pode parecer algo muito subjetivo, mas é preciso nunca esquecer que, desde os primórdios da Filosofia, o exercício da racionalidade está quase sempre associado à ideia de “equilíbrio”, e ambos subjazem à ideia de “bom senso”. Basta nos lembrarmos da própria imagem de nossa Justiça (uma balança);  e também palavras como “fair” na língua inglesa que nos remetem a este equilíbrio.

Tanto de um lado (politicamente correto) quanto de outro (politicamente incorreto), parece-me que seria necessário o resgate deste bom senso. Ter a capacidade de perceber esses limites entre o riso e a humilhação. Para isso, é fundamental que se tenha noção do lugar a partir do qual se fala e com quem se fala. Ter, por exemplo, consciência de que um lugar nos meios de comunicação de massa tem um significado totalmente diferente (sobretudo pelo seu “poder” de comunicação e difusão de ideias e valores) de uma roda de amigos.

E, para isso, seria interessante que ocorresse algo que me parece utópico: que fôssemos mais racionais do que habitualmente estamos acostumados a ser. Que usássemos mais a nossa capacidade de pensamento para poder manter este equilíbrio entre o estado jocoso de uma simples brincadeira e uma ofensa ou humilhação. 

O exagero em qualquer esfera da vida não parece ser confortável nem apropriado.

Leia mais sobre o caso Amazon nos links abaixo:

1)  Jornal da Cultura (TVCultura): Tom e Jerry reacendem debate sobre o politicamente correto.

2) Estadão: Tom e Jerry eram racista, adverte Amazon.

3) Portal UOL: Tom e Jerry | Episódios exibidos na Amazon e iTunes vêm com aviso de racismo.

4) Portal G1: Serviço de streaming inclui aviso de racismo em desenho ‘Tom e Jerry’.

Comentários estão desabilitados para essa publicação