Todas as cores do mundo

Por Carlos Frederico Lucio

“Não se nasce mulher. Torna-se mulher.” (Simone de Beauvoir)

Creio que seja por demais significativo o fato de que Psicanálise e Antropologia tenham sido duas ciências com surgimento tão tardio na história do pensamento ocidental. Muito mais preocupados com as questões que nos são externas (o mundo, a natureza, os processos históricos e até mesmo a transcendência, a espiritualidade etc.), fomos deixando para trás a necessidade de compreender quem somos de um ponto de vista mais holístico e completo. Foi assim que, no nem tão longínquo século XIX, formou-se a presunção de que bastava conhecermos a nossa realidade material (e natural, “biológica”) para que pudéssemos nos compreender a nós mesmos naqueles aspectos considerados mais relevantes. Afinal, afirmavam essas teses novecentistas, em última instância, somos determinados por nossas bioquímicas moleculares, neurológicas ou qualquer reducionismo biológico-comportamental que o valha. Pensar o ser humano se reduzia, pois, a pensar sua condição natural, sua animalidade.
Num primeiro momento de sua constituição como campo científico, a Antropologia e a Psicologia caíram nesta armadilha positivista e reducionista, de explicar tudo o que diz respeito às ações e comportamentos humanos (seja do ponto de vista coletivo – a primeira -, seja do individual – a segunda) com base nas relações determinantes e deterministas de sua constituição fisiológica. Esta seria alegadamente a grande “matriz” de onde emanam os eflúvios de nos ditam e, em última instância, explicariam nossas ações. E mais: poderíamos intervir sobre elas para “corrigir” eventuais erros desta mesma natureza, vista assim como nem tão perfeita e infalível. No campo da Antropologia, algumas variantes perversas deste pensamento tiveram sua concretização com consequências extremamente nefastas na história, sendo as ideias de “raça” e “sexo” duas das mais relevantes.
Com relação ao exercício da sexualidade, o mais curioso é que neste reducionismo naturalista (ou naturalizante), não se percebe o que talvez seja o maior de todos os equívocos. De um lado, nós seres humanos fazemos questão o tempo todo de manter nossa distinção (e superioridade, por que não?) contra os demais seres da natureza (afinal, nos diz o mito fundador de nossa civilização, somos “criados à imagem e semelhança da perfeição de um deus”). Inclusive relegando à esfera da animaliadade (Natureza) aqueles que não estão em adequação ao espaço da Cultura: porco para aquele que é sujo; vaca ou galinha para a mulher que tem um comportamento sexual “desregrado”; garanhão, para o homem que prova sua virilidade na conquista das fêmeas etc. Do outro, para manter os padrões morais de uma sexualidade institucionalmente controlada e normatizada, construídos ao longo de séculos, jogamos no lixo esta distinção da cultura e o consequente pedestal autoconstruído, regredindo ao momento lógico da anti-cultura, da anti-sociedade. Advogamos certas características “naturais” como sendo o fundamento daquilo que é considerado “correto”, “justo” e “praticável”, evidentemente que com a consequência de condenar toda forma que não se ajusta a este quadro (isto é, não se enquadra) como sendo anômala, desviante e, muitas vezes, criminosa. Sem perceber tal incoerência lógica, estas ideias nos remete de novo à condição simbolicamente renegada da “animalidade”, desprezando justamente a nossa “humanidade”. O etnocentrismo característico da cultura ocidental vai mais longe e comete o equívoco básico da arrogância e da prepotência neste tema (entre tantos outros): pressupor uma universalização deste comportamento sexual tido como “natural” (e de suas variantes sociais tais como as práticas matrimoniais, o próprio conceito de família, paternidade, sistemas de parentesco etc.), claro que pautado pelo modelo da família ocidental europeia.

Sendo a Antropologia, no seu sentido etimológico mais puro, a “ciência do homem”, é de se esperar que ela traga luzes para sepultar deste debate os ranços tanto do determinismo biologizante do comportamento sexual, quanto do etnocentrismo que coloca o modelo europeu de sexualidade (e, correlatamente, família, casamento e parentesco) como parâmetro universal a ser seguido por todos.
A construção do conceito de gênero (tanto na Psicologia quanto na Antropologia) é um dos maiores exemplos de como a questão pode ser trabalhada de forma muito mais ampla e complexa para se compreender (sem prejulgar, condenar ou classificar como anomalias, aberrações ou, pior ainda, patologias) a enorme variedade de possibilidades que a sexualidade humana encerra. Evidentemente que a natureza nos fornece uma matriz (XX ou XY). Isso é fato. O que não se pode menosprezar (como fazem as teses do determinismo biológico – ainda que disfarçadas de uma roupagem pseudo sofisticada do péssimo e empobrecido uso que se vem fazendo de uma grande ciência como a neurociência contemporânea) é que, como característica fundamental que nos confere nossa humanidade, a nossa racionalidade nos dota de uma dimensão extremamente importante, capaz de criar construções, significações e, portanto, operacionalizações sociais destas mesmas construções: trata-se da nossa dimensão simbólica. Extremamente poderoso, nosso simbolismo está presente em várias esferas da nossa vida, e a todo momento dá um recado para a mãe-natureza: tudo bem, você me criou um ser vivo, sujeito às suas “leis”; mas eu sou mais poderoso que você e recrio, reinvento, essas leis, fazendo-as se cumprir do jeito que eu quero. Nós, seres humanos, não somos determinados por elas; ao contrário, nós a determinamos. A questão é: somos naturais e culturais ao mesmo tempo, mas o que, de fato, nos difere dos demais animais? Se a explicação do comportamento humano for, em última instância, natural ou biológica, a resposta é “nada”. Somos meros animais. Isto evidentemente escapa à percepção das mentes menos aguçadas.

A sexualidade é um entre tantos campos em que este embate entre Natureza e Cultura é operado. As inúmeras sociedades humanas espalhadas pelo globo são um celeiro de exemplos da enorme variedade disso. Assim, por exemplo, o clássico grupo Trobriandês (analisado por Malinowski no início do século XX), ignora completamente que a geração de uma criança está vinculada ao ato sexual: para eles, é um ato totalmente espontâneo e exclusivamente feminino. A consequência social disso é que construíram uma sociedade com base matrilinear e um conceito de família que não considera e existência de um pai (o homem é apenas o marido da mãe, para uma criança). Fato, aliás, que ensejou um debate entre Malinowski e Freud a respeito do pressuposto universal do complexo de Édipo. Ou, mais radicalmente ainda, a instituição do casamento entre mulheres entre os Nandi do Quênia Ocidental (analisado por Regina Oboler) que classifica uma das mulheres (a mais velha) como um “female-husband”: o mais curioso é que os filhos aí gerados são das duas (independentemente, como nos ensina nossa “biologia”, de ter havido um ato sexual com um homem). A literatura etnográfica em antropologia multiplica exemplos assim tidos, pelos olhos ocidentais, como “exóticos” e “bizarros”, mas que nos ensinam muito sobre esta enorme possibilidade e que é de fato “ser humano”: inventar, criar sobre a Natureza, afirmando nossa diferença sobre ela. O que interessa não é o dado natural, corroborado pela Biologia (ciência), mas a construção, a classificação social do que é e de como deve ser praticado o ato sexual e, por conseguinte, a construção da sexualidade. E estas sociedades funcionam muito bem assim, obrigado!
Mais próximo a nós, podemos citar a enorme variação de gêneros historicamente construída, grande parte de difícil compreensão para as pessoas. “Homem e mulher” deixam de ser a polaridade básica substituída por realidades como gays, lésbicas, transgêneros (natureza de um sexo e psiquê de outro), travestis (mulheres fálicas) etc. Uma enorme “sopa de letrinhas” em forma de sigla (GLS, GLBT, GLBTT, LBGT etc.) que vem caracterizando o movimento político da diversidade sexual, parodiando e expressão-título da dissertação de mestrado de Regina Facchini. O que dirá então de certas variantes ainda mais difíceis de serem compreendidas como um transgênero lésbico, por exemplo (o cara com um corpo de homem, psiquê de mulher e cujo desejo é ter relações sexuais com mulher como mulher – e não como homem). O fato é que a dificuldade de lidar com estas categorias leva as pessoas ao mais cômodo: ao invés de procurar compreedê-las, rotulam-nas como anomalias, quando não, patologias e com isso o assunto parece encerrado. E não está, obviamente. Ignora-se também que a única patologia aí presente é a de uma sociedade que não consegue encarar possibilidades mais ricas de exercício da diversidade no campo da sexualidade, tentando reduzir a realidade a um simplismo que ela não tem.
Gosto sempre de mencionar em minhas aulas o caso dos travestis, especialmente aqueles com quem a maior parte da população tem contato, que são os que estão na rua, prestando serviço sexual (prostituição). Talvez não exista categoria de gênero que mais escancare o moralismo e a hipocrisia da sociedade no campo da sexualidade. Diferentemente do transgênero masculino (que quer extirpar o símbolo de sua ambiguidade, o pênis), o travesti faz questão de mantê-la. Ele não quer ser uma simples mulher: quer ser mulher com falo. E o travesti que se prostitui sabe que isso é um diferencial “mercadológico”, se podemos colocar nesses termos: levantamentos feitos por sexólogos (cientistas sociais) revelam que quem o procura, em sua grande maioria, são homens casados e cujo desejo é ter uma relação passiva com uma mulher de falo. Se levarmos em conta que o que define a homossexualidade é o amor e o desejo pelo outro do mesmo gênero, o mais desafiador para a compreensão das pessoas neste caso específico é que isso não necessariamente torna este homem um homossexual, pois ele apenas quer ter prazer em uma região do seu corpo socialmente condenada aos homens. Isto é um outro campo fertilíssimo para discussão e debate. Talvez, por esse escancaramento de uma verdade que se quer ocultar, este grupo (os travestis) seja alvo das maiores violências e atrocidades, especialmente (como mostram as estatísticas) por parte de jovens.
Finalmente, em tempos de efervescência político-social por conta de direitos que atingem minorias sexuais, creio que esta discussão se afirma com toda a relevância. Principalmente no momento em que o retorno de um certo primarismo reducionista do cultural pelo biológico se faz presente com toda força em algumas esferas do debate jurídico-político (onde decisões que afetam diretamente a vida das pessoas são tomadas). Digno de nota são os levantes ocorridos na França nas duas últimas semanas contra a aprovação do chamado “casamento gay”; ou as manifestações contra o atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em Brasília, sob a acusação de homofobia e racismo e que está para apresentar nesta Comissão um projeto popularmente denominado “Cura Gay”, já comentado pelo colega Pedro de Santi neste blog.
Neste sentido, é extremamente simbólico que a bandeira do arco-íris do movimento gay – que se tornou conhecida do grande público por conta da crescente visibilidade da Parada do Orgulho Gay em São Paulo (e no resto do mundo) – não tenha as preconizadas 7 cores do fenômeno natural cujo nome ela porta: possuindo 6, não 7, cores, ela é um símbolo daquela afirmação da Cultura sobre a Natureza. O reconhecimento simbólico de que, o que importa para o ser humano, são suas criações, suas elaborações, suas construções e não uma mera reprodução do que é o campo natural. Se assim fosse, qual a vantagem de ser e nos orgulharmos de ser humanos?

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