Sobre retratos e selfies: de Narciso a Dorian Gray

Carlos Frederico Lucio

Já faz algum tempo, uma imagem engraçada anda circulando pelas redes sociais digitais:  Oscar Wilde com um smartphone na mão, mostrando a sua própria imagem envelhecida, com o título “The Selfie of Dorian Gray”.

Recentemente, por ocasião do ritual de velório e enterro do ex-candidato à presidência Eduardo Campos, do PSB, houve muito burburinho acerca dos selfies tirados por muitas das mais de 100.000 pessoas que lhe foram prestar as últimas homenagens. As páginas das principais mídias sociais ficaram cheias de reações manifestando indignação com o que chamaram de falta de respeito. O fato foi muito comentado, inclusive, na grande imprensa, ressuscitando mais uma discussão a respeito do significado da proliferação desta prática que vem se tornando cada vez mais constante em nosso meio, principalmente com fins de publicação nas redes sociais digitais.

Muito se vem falando sobre isso. Análises focando fundamentalmente a perspectiva individual, ou seja, sob a ótica da psicologia, tentam compreender quais as dimensões da personalidade podem ser analisadas a partir deste fenômeno e que relações ela pode guardar com eventuais distúrbios e patologias neste campo.

Dizer que o selfie é um ato que revela (em maior ou menor grau, dependendo da circunstância) um comportamento narcísico, um show de vaidades, um certo egocentrismo etc. é um truísmo. Se é patológico ou não, não acredito que seja tão simples afirmar. O fato é que, muitos consideraram a atitude num momento de velório um desrespeito. (Sem entrar no mérito desta discussão – que não é o ponto aqui – até mesmo isso é questionável quando nos lembramos que ninguém menos do que Barack Obama fez o mesmo no velório de Nelson Mandela. E, à época, o fato foi comentado até mesmo por todos verem um comportamento “banal” numa personalidade tão ilustre, mas não necessariamente fora condenado como falta de respeito.) Além disso, não nos esqueçamos que este comportamento (de se registrar a si próprio) é uma constante na história da humanidade: desde as primeiras pinturas das cavernas, passando pelas esculturas gregas e os autorretratos dos grandes pintores do universo da história da arte. Pensando assim, não vejo muita diferença entre os registros feitos por outros sobre mim mesmo (quando encomendo uma escultura de um busto ou uma estátua, ou mesmo uma pintura, ou fotografias) e aqueles feitos por mim (como nos autorretratos ou os selfies).

Não desprezando o que já se disse sobre as consequências do excesso de narcisismo e eventuais distúrbios sociais ou psicológicos daí decorrentes, mas navegando por águas distintas (apesar de contíguas às de outras abordagens), eu queria propor uma linha diferente de reflexão: a ideia de que (também) a prática do selfie estaria ligada a uma necessidade que parece ser universal que as pessoas sentem do registro da sua presença no mundo e, especialmente, quando se trata de lugares e momentos considerados marcantes. Seja sob sua ótica pessoal (uma viagem de férias, por exemplo), seja sob a ótica coletiva (como o velório de Eduardo Campos, que é, sem dúvida, um dos fatos políticos mais relevantes dos últimos meses – à parte a sua dimensão pessoal dramática, como bem analisou o meu colega Pedro de Santi num belo artigo recentemente publicado aqui no Blog Nota Alta da ESPM).

Tomando uma certa abordagem de caráter antropológico no sentido estrito do termo, desde um  ponto de vista menos individual e mais global do ser humano portanto, esta necessidade do indivíduo de registrar um testemunho de um fato está muito ligada à sua historicidade e à sua memória. Brincando com os mitos gregos, esta, a memória, é o único instrumento de que dispomos que nos aproxima ao máximo da condição divina da imortalidade (característica mais marcante que separa a condição humana daquela dos deuses) escapando da tragédia de sermos devorados pelo tempo (o que foi muito bem tematizado no mito de Cronos – ou Saturno): por meio de nossa memória, podemos nos tornar eternos, vencendo, ainda que simbolicamente, a morte. E os registros permitem a recuperação deste tempo vivido, como se trouxéssemos o passado para junto do presente. Isto é historicidade.

É neste sentido que os registros (cartas, relatos, diários, desenhos, fotos, filmes etc.) assumem um papel extremamente importante na afirmação da condição de uma eternidade construída para o ser humano, como que negando a sua real condição de ser transitório, finito, mortal. E este jogo, entre o real e o simbólico, parece ser crucial para nos definirmos até mesmo como indivíduos. Afinal, escrever um livro (perpetuação do meu nome), plantar uma árvore (perpetuação de um feito) e ter um filho (perpetuação do meu sangue), seriam  traduções materiais para um conjunto de leituras simbólicas acerca da perenidade, da eternidade que ainda parecem estar muito fortes no imaginário das pessoas como valores a serem afirmados em nossa cultura. Ainda que não abracemos nenhuma fé que nos prometa continuar a existência mesmo que nosso corpo se extinga, continuamos a recusa em nos aceitar como mortais, finitos.

Fazendo um recorte neste raciocínio para voltar ao ponto inicial do texto (afinal, trata-se de um blog), nesta leitura, considero os selfiescomo ligados a um tipo específico de registro: a fotografia. Neste sentido, considerando uma perspectiva mais restrita do universo privado, o que as mídias sociais fizeram na história recente de nossa sociedade foi, de certa forma, evidenciar e até mesmo exponenciar esta característica de preservação de uma memória não só de testemunho de fatos, mas (aí entra toda a questão egoica – não necessariamente narcísica) de que eu estava lá.

Em tempos de mídias analógicas, câmeras pesadas e o velho rolo de filme que requeria uma limiação de registros, quando eu viajava, ao regressar, gostava de reunir amigos para ver algumas fotos dos lugares visitados  (desculpa para tomar vinho, claro). Sempre brincava quando inquirido: “Mas cadê você nas fotos?”, ao que eu respondia: “Estou atrás da câmera!” Até pela dificuldade de se tirar um autorretrato com câmera analógica quando se viajava sozinho, quase não tinha fotos minhas, à exceção de umas poucas quando solicitava a alguém que a tirasse ou quando era possível utilizar o recurso automático.

Se esta fotografia “à antiga”, dispensando o autorretrato como testemunha de que estive lá, afirmava uma certa individualidade na medida em que eu estava presente pelo meu olhar, a fotografia digitalizada e, principalmente, a partilhada, parece tê-la roubado: afinal, como atestar a autenticidade, a originalidade, a individualidade de uma foto se ela se parece tanto com tantas outras que se proliferam pelas redes? Colocar-se a si próprio no cenário, parece resolver um pouco esta questão. E o selfie foi ganhando espaço cada vez mais consolidado. Disso, ao exagero, foi um passo.

E é exatamente este o grande problema que vem sendo discutido (e o caso do velório de Eduardo Campos evidenciou): os exageros que se vem cometendo com os selfies, excedendo, em muito, os limites toleráveis do bom senso, da boa educação e até mesmo do respeito. Parece-me que neste sentido, há uma correta identificação desta prática, sobretudo quando excessiva, como um sintoma que revela aspectos patológicos sobre como o indivíduo lida consigo mesmo e com sua exposição. Ou seja, sua relação com a esfera do social. Gostaria apenas de chamar atenção para o fato de que não considero, particularmente, a prática como um problema, mas sim o seu excesso e distorções.

Não se trata, portanto, de condenar a priori os selfies, mas de pensar que esta prática (como outras práticas das redes sociais digitais) nos evidencia o velho problema do equilíbrio tão bem tematizado em toda a história da filosofia: assim como tudo na vida, uma boa dosagem entre auto-exposição e auto-preservação ainda é desejável e expressão de uma saúde não somente mental mas, principalmente, social.

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