O terrorismo no mundo contemporâneo: ponderações metodológicas

Sidney Ferreira Leite

O principal objetivo do presente artigo é contribuir para a compreensão de dois importantes fenômenos do mundo contemporâneo, isto é, a expansão do fundamentalismo religioso e as ações terroristas em escala global. Fatos que provocam grande apreensão na sociedade contemporânea e estão a exigir, especialmente dos governos, combate eficaz, notadamente, contra as redes terroristas que atuam de forma global, provocando morte e destruição.

O confronto de ideias e o debate de argumentos, elaborados a partir de perspectivas teóricas e metodológicas distintas, não é usual nos meios acadêmicos brasileiros. Como explicar esse fato? Caso a pretensão seja obter uma resposta densa e profunda, precisamos buscar as suas origens no modelo de colonização levado a cabo pelos portugueses, em suas possessões na América. Em tal modelo, destaca-se a proibição do ensino superior nas colônias. Lembremos que as universidades, desde o período medieval, são centros de debate e reflexão; lamentavelmente, as nossas universidades começaram a ser criadas na segunda e terceira décadas do século passado. Portanto, a nossa tradição nesse campo é relativamente recente, principalmente quando comparamos com a experiência europeia.

Dessa forma, não deixa de ser ao mesmo tempo, inusitado e surpreendente que as ações terroristas que ocorreram em Paris, na redação do periódico Charlie Hebdo, no dia 7 de janeiro, tenham instigado o debate em torno de percepções acadêmicas distintas sobre o terrorismo e o fundamentalismo islâmico, no mundo contemporâneo. Tal debate teve início com o artigo Raqqa, aqui, escrito pelo geógrafo Demétrio Magnoli. (Folha de S. Paulo, 10 de jan. de 2015)

No artigo em questão, Demétrio Magnoli sustenta que professores como: Arlene Clemesha (USP) e Williams Gonçalves (UERJ) demonstraram nas entrevistas que concederam sobre os acontecimentos de Paris, condescendência com os atos terroristas e acabaram por justificar a ação dos fundamentalistas islâmicos, ao sugerir que os jornalistas do Charlie Hebdo não deveriam fazer humor ou provocar os muçulmanos. Na ótica de Magnoli, os professores defenderam argumentos, segundo os quais, os franceses devem renunciar às suas leis e aos seus valores, como a laicidade do Estado.

A professora Arlene Clemesha, por sua vez, respondeu às ponderações do geógrafo e criticou com veemência as suas conclusões. A docente da USP utilizou como base para sua resposta, os princípios filosóficos da religião muçulmana, bem como a sua trajetória ao longo da História. Segundo a sua perspectiva, devem ser levados em consideração para compreensão das causas do fundamentalismo islâmico contemporâneo, tanto o colonialismo europeu no Oriente Médio, como as construções culturais que desqualificam o Islã (abrigadas no orientalismo). Além de sublinhar que não existe na religião muçulmana uma violência atávica que explique ou justifique os fatos violentos de Paris. (Folha de S. Paulo, 16/1/2015).

Não há a intenção de tomar partido ou posição em relação aos lados em conflito, mas, propor uma inversão de enfoque. Para a operacionalização dessa mudança de perspectiva, são apresentadas três formas para compreender o tema em questão. Em outras palavras, são relacionadas de forma sintética as possibilidades e os limites de três metodologias usualmente empregadas para a compreensão do terrorismo.

De fato, existem pelo menos, três perspectivas de análise que podem ser utilizadas para o estudo do terrorismo no mundo contemporâneo: 1. A psicológica (microanálise), 2. A sociológica (macroanálise) e 3. A contextual. Para um detalhamento mais profundo dessas perspectivas analíticas, recomendo o excelente livro Leaderless Jihad, escrito por Marc Sagman. As ideias defendidas nesse artigo estão em confluência com as perspectivas encontradas em Leaderless Jihad.

Como sustenta Sagman, o método psicológico é o mais adotado para a compreensão do objeto de investigação em questão. Essa metodologia é baseada no pressuposto que existe algo diferente nos terroristas. O fundamento dessa abordagem é a interpretação, segundo a qual, há causas psicológicas e psiquiátricas que explicam o comportamento errático, desviante e violento dos terroristas. As explicações estão relacionados à vida e a formação dos terroristas, desde a infância. Assim, é possível detectar determinados padrões e tendências de comportamento que indicam o potencial de alguns jovens para seguir a trilha que leva ao terrorismo. Dessa forma, o episódio do massacre na redação da revista Charlie Habdo poderia ser explicado, a partir os desvios psicológicos e/ou psiquiátricos dos irmãos Cherif e Said Kouachi .

Por mais sedutora que a análise psicológica possa ser, há três objeções importantes a serem feitas: a. não conseguimos explicar, por exemplo, como e porque o terrorismo se espalha, concentrando o nosso olhar apenas nos terroristas individualmente; b. não avançamos na compreensão do fenômeno, quando o terrorista é definido como alguém fundamentalmente diferente de nós e, finalmente, c. o terceiro grande problema da metodologia em questão é o foco excessivo no individual e a colocação em plano secundário dos fatores contextuais que, em geral, atuam como geradores e fomentadores das ações terroristas.

A segunda possibilidade de análise, a sociológica, visa identificar as raízes do terrorismo nas sociedades contemporâneas. O percurso analítico segue caminho oposto ao da primeira metodologia. A sociedade é vista como um sistema. Os referenciais encontram-se nas teorias sociológicas; o enfoque da abordagem é o todo, isto é, o terrorismo é determinado por fatores externos aos indivíduos, tais como: a miséria, a influência de líderes carismáticos e/ou a falta de oportunidades econômicas. Nessa senda, cabe ao pesquisador investigar quais são as estruturas que facilitam e encorajam a propagação do terrorismo. Além de pesquisar e responder sobre o tipo de função o que terrorismo desempenha na sociedade.

O maior problema que essa segunda opção metodológica apresenta é a sua incapacidade em explicar, de forma convincente, a seguinte questão: os mesmos fatores sociais, econômicos, políticos ou culturais atuam sobre milhões de pessoas, por que apenas algumas dessas pessoas tornam-se terroristas? É importante salientar que os fatores acima destacados, não podem ser ignorados quando buscamos explicar os fundamentos do terrorismo. Todavia, esses não explicam, por exemplo, como e por que pessoas formam grupos para planejar e colocar em prática ações terroristas, ou entender, como as organizações terroristas criam a sua identidade coletiva (nós) e tornam-se hostis à sociedade (eles) que está a sua volta. Cabe sublinhar que é discutível o argumento que o terrorismo é um fenômeno atávico e perene a todas as sociedades, como sustenta a perspectiva metodológica que enfatiza o papel da sociedade na criação e no desenvolvimento do terrorismo.

A terceira opção metodológica parece atender de forma mais significativa, às demandas necessárias para a compreensão do fenômeno terrorismo no mundo contemporâneo. A análise tem como base o estudo do contexto em que se dá a ação terrorista, isto é, o seu momento histórico. O estudioso do fenômeno deve concentrar os seus esforços na tentativa de responder às seguintes questões: como se deu a evolução para o terrorismo? Como os terroristas interagem com os cidadãos em geral? Como interagem os outros grupos? Como são motivados a praticar as atrocidades? Como são influenciados pelas ideias que motivam as ações violentas? Como e por que seguem ordens de líderes que muitas vezes estão distantes? Quem, como e por que são financiados? Assim, o estudo do terrorismo em seu contexto, tem como pressuposto levar o pesquisador do tema, a observar o processo de interação com o contexto que levou a motivação, a mobilização e a radicalização dos grupos terroristas. Dessa forma, deveríamos compreender os lamentáveis eventos de Paris, construindo uma análise global e total do fenômeno, relacionando o todo (o contexto histórico) às suas diferentes partes (a ação terrorista e os seus atores).

Diante do exposto, é muito bem vindo o debate sobre o terrorismo na sociedade contemporânea, notadamente, em sua vertente mais sinuosa, ou seja, a fundamentalista. Entretanto, precisamos ir além dos embates de natureza ideológica. A contribuição que o mundo acadêmico pode oferecer para a sociedade sobre o complexo fenômeno em questão é a elaboração de estudos sistemáticos, fundamentados em bases de dados sólidas e pressupostos teórico-metodológicos que apresentem perspectivas analíticas abrangentes. O terrorismo e o fundamentalismo são desafios a serem enfrentados com muito conhecimento, inteligência e, sobretudo, estratégia, caso contrário, todos nós estaremos condenados ao medo, à insegurança e ao imponderável, como ocorreu na redação do periódico Charlie Herbdo, no fatídico dia 7 de janeiro de 2015, uma data que deixa marcas e rastros que marcarão a nossa História nos próximos anos, que nem a poderosa aguarrás do tempo poderá apagar.

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