Crimes de intolerância: a ação passiva de todos

Carlos Frederico Lucio

Recentemente, voltamos a testemunhar crimes de intolerância no país. Não que eles tenham acabado e, de repente, ressurgido: acabaram e regressaram na mídia, não da realidade. Do racismo flagrante de alguns integrantes da torcida do Grêmio, ao linchamento moral da jovem Patrícia e a consequente pressão “terrorista” que se instalou sobre ela e seus familiares, levando ao recente atentado à sua casa (curioso como não se percebe que os dois atos são criminosos, como já analisei em um outro texto no Blog da ESPM), o caso do menino do Rio de Janeiro impedido de ingressar na escola por portar guias de candomblé, passando pelo atentado ao CTG de Santana do Livramento (RS) ao assassinato brutal do jovem João Donati (em Goiânia), os dois últimos relacionados a um tipo de crime que é tratado de forma muito pouco incisiva e relativamente branda pela mídia: a homofobia.

Como em outras duas formas de violência (racismo e machismo), a homofobia é muito forte no Brasil. E, assim como nas outras duas formas de violência, não lhe é dada a devida importância, pelo menos não a importância proporcional ao seu impacto. A seu respeito, os dados estatísticos no Brasil são alarmantes. E a grande mídia praticamente se cala frente a eles. Segundo um dos mais completos estudos já feitos, conduzido pelo Grupo Gay da Bahia (uma das mais atuantes organizações dos direitos homossexuais no país), em 2013 foram cometidos um assassinato por homofobia a cada 26 horas no Brasil (Cf. matéria no portal UOL). Num estudo prévio, bem mais abrangente, a mesma ONG fez um levantamento entre as décadas de 1960 e 2007 (Cf. dados no Portal do Observatório de Segurança), confirmando sua gravidade no país.

É certo que, junto com esses dados, também experimentamos significativos avanços no campo social. Seja no reconhecimento dos direitos dos casais homossexuais (direitos conquistados com muita luta e, literalmente, sangue – pois muita gente foi assassinada por causa disso), na visibilidade e ampliação da aceitação da convivência em espaços fora dos tradicionais “guetos” (tão comuns até os anos 1990), seja na criação de instâncias jurídicas específicas para acolher e investigar casos de violência homofóbica (São Paulo, por exemplo, criou a primeira delegacia especializada neste tipo de crime após o brutal e covarde assassinato, promovido por um grupo de skinheads, do jovem Edson Neri da Silva, em 2000). Poderia aqui elencar uma série de outros avanços. Por outro lado, parece que quanto mais pensamos que estamos vivendo tempos de modernidade, de usufruir conquistas das gerações passadas que tanto batalharam para a construção de uma “civilização” da qual nos orgulhássemos, mais nos deparamos com exemplos que nos remetem à barbárie. É como se nós não aprendêssemos e, malgrado tudo o que conquistamos de bom e de nobre, insistimos em não abandonar a violência (concreta e simbólica) que existe em  nós.

Afinal, um princípio básico da relação de alteridade nos coloca diante do paradoxo. Uma vez que o “estranho”, o “bizarro” é aquilo com o qual eu não estou acostumado, uma das principais formas de promover o fim da intolerância – pelo menos de maneira mais espontânea – é estimular a convivência com a diferença, com a diversidade. Assim, aprendemos que o “estranho” só existe no meu referencial e que, no referencial do outro, eu posso até ser bem mais estranho do que imagino. Em tese, a convivência diluiria este estranhamento minimizando o potencial de intolerância. Paradoxalmente, esse mesmo mecanismo vai gerar, em alguns nichos – sobretudo entre os menos esclarecidos, fundamentalistas, reacionários e conservadores -, exatamente a reação contrária: a diferença incomoda, perturba e, consequentemente, desperta sentimentos de insegurança e ódio. É um ciclo difícil de ser rompido e, nesses casos mais específicos, somente a força da lei pode obrigar o intolerante a respeitar a diferença (com relação ao que ele entende como igual, deixo claro).

E, nesse sentido, instituições sociais como a família, igrejas, escola e o Estado como um todo tem um papel fundamental. Os valores passados e as ações praticadas vão ser um forte referencial na orientação do comportamento. Não nascemos intolerantes: aprendemos a sê-lo. E, contrariamente, podemos aprender a tolerância (e até desaprender a intolerância).

Com relação ao assassinato do  jovem João Donati, uma mensagem interessante circula pelas mídias sociais. Uma mensagem que conclama a nós todos a pensarmos sobre nossas responsabilidades por esse crime brutal (como de resto, completo eu, por todos os outros crimes de intolerância, em especial o machismo e o racismo) nas piadas que fazemos, nas humilhações que não combatemos, nos preconceitos que ajudamos a difundir por nossa omissão. Nossa responsabilidade em nos posicionarmos claramente frente ao fato de que a intolerância e o ódio nascem, muitas vezes, de forma branda e impercetível. Quando nos damos conta dela, já pode ser tarde. Claro que sua mensagem  é simbólica e não literal, mas tem uma eficácia contumaz para uma reflexão. Vejamos um trecho

 

“Sim, foi você que matou João Donati. Você mesmo, que faz piadinhas sobre seu amigo gay pelas costas. Você que ridiculariza travestis (ou transexuais, ou transgêneros, ou qualquer que seja sua concepção da letra T). Você, político, que diz que gays não são uma minoria digna de ser protegida, você que luta contra a criminalização da homofobia. Você, padre ou pastor, que condena a homossexualidade no púlpito ou no altar, espalhando seu discurso de ódio e você, fiel, que dá glória à deus ao ouvir esta afirmação. Você, pai ou mãe, que não aceita o próprio filho. Você que se cala ao presenciar uma agressão. (…) Porque o ódio que você ajuda a espalhar é o mesmo ódio que o matou.”

 

Pensamos não ter responsabilidade direta, mas a omissão e até mesmo uma certa “colaboração” acaba alimentando um elemento importante na composição do caldo da intolerância: o ódio.

A passividade pode ser mais ativa do que pensamos. E isso nos torna, não culpados, mas responsáveis por cada ato de violência, por cada assassinato gerado pela intolerância.

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