Como o Ocidente compreende mal a China

Na semana passada, a China deu um passo da autocracia para a ditadura. Xi Jinping, que já é o homem mais poderoso do mundo, comunicou que a Constituição chinesa será mudada e, assim, ele poderá ocupar a presidência enquanto desejar – e, supostamente, por toda sua vida. Desde Mao Tsé-tung, um líder chinês jamais reuniu tanto poder abertamente. Esta não é uma mudança importante apenas para a China, mas é também evidência de que a aposta feita pelo Ocidente nesse país fracassou.
Após o colapso da União Soviética, o Ocidente acolheu bem a entrada daquele que era o segundo grande país comunista do mundo na ordem econômica mundial.
Os líderes ocidentais acreditavam que, dando à China espaço em instituições como a Organização Mundial do Comércio, ela ficaria vinculada a um sistema regido por regras estabelecidas após a 2.ª Guerra. Esperavam que, com a integração econômica, o país evoluiria para uma economia de mercado e, à medida que prosperasse, sua população acabaria ansiando por liberdades democráticas, direitos e um estado de direito.
Uma visão válida, compartilhada também por esta publicação, e melhor do que uma exclusão do Estado chinês. A China cresceu muito além do que se imaginava. Sob a liderança de Hu Jintao, supunha-se que a aposta ainda valeu a pena. Quando Xi assumiu a presidência, há cinco anos, especulou-se muito que seu governo seria mais constitucional. Hoje, esta ilusão foi pelos ares. Na realidade, Xi conduziu a política e a economia no sentido da repressão, do controle estatal e do confronto.
Comecemos com a política. Xi usou seu poder para reafirmar o domínio do Partido Comunista e de sua posição dentro dele. Como parte de uma campanha contra a corrupção, expurgou possíveis rivais. Realizou uma reorganização muito abrangente do Exército de Libertação do Povo, em parte para assegurar sua lealdade ao partido e a ele pessoalmente.
Mandou defensores da liberdade de pensamento para a prisão e extirpou as críticas ao partido e ao governo na mídia e na internet. Embora as pessoas desfrutem de liberdade relativa, ele vem criando um sistema de vigilância para monitorar o descontentamento e desvios que possam existir.
A China não professava nenhum interesse no modo como outros países eram governados, desde que não fosse incomodada. Mas, cada vez mais, Xi se apega a um sistema autoritário em oposição à democracia liberal. No Congresso do Partido Comunista, no ano passado, ele ofereceu uma “nova opção para outros países”, que envolveria “a sabedoria chinesa e o enfoque chinês para solução dos problemas enfrentados pela humanidade. Posteriormente, afirmou que a China não exportaria seu modelo, mas hoje existe a percepção de que os EUA não são apenas um rival econômico, mas também ideológico.
A aposta de inserir o país nos mercados teve mais sucesso. A China integrou-se na economia global. É a maior exportadora do mundo, com mais de 13% do total das exportações globais. É um país inovador e habilidoso, abrigando 12 das 100 mais valiosas companhias de capital aberto. Criou uma prosperidade extraordinária, para si e aqueles com que negocia.
Mas a China não é uma economia de mercado e, com base no atual caminho, jamais será. Pelo contrário, controla cada vez mais as atividades empresariais como um braço do poder estatal. Considera suas variadas e inúmeras indústrias estratégicas. Seu plano Made in China 2015, por exemplo, estabelece o uso de subsídios e proteção para criar líderes mundiais em dez setores, incluindo aviação, tecnologia e energia, que, juntos, cobrem quase 40% da sua área de manufatura.
Embora o país esteja menos audaz em termos de espionagem industrial, as companhias ocidentais ainda se queixam de ataques patrocinados pelo Estado contra sua propriedade intelectual. Por outro lado, as empresas estrangeiras são lucrativas, mas sofrem com o fato de o comércio ser feito sempre com base nas condições da China. Empresas de cartão de crédito americanas, por exemplo, foram autorizadas só depois de os pagamentos terem mudado para os telefones celulares.
A China adota algumas regras ocidentais, mas parece estar escrevendo um sistema paralelo próprio. É o caso da Iniciativa um Cinturão e uma Estrada, que promete investir mais de US$ 1 trilhão em mercados no exterior, muito mais do que o valor envolvido no Plano Marshall.
Em parte, trata-se de um programa para desenvolver áreas na região ocidental pobre da China, mas também cria uma rede de influência financiada pelos chineses que inclui qualquer país disposto a se inscrever, desde que aceite o modo de resolução de disputas dos chineses. Caso as normas ocidentais em vigor hoje frustrem a ambição chinesa, este mecanismo pode se tornar uma alternativa.
E a China usa o comércio para confrontar seus inimigos. E procura puni-los diretamente, como ocorreu com a montadora Mercedes Benz, obrigada recentemente a emitir um pedido de desculpas após citar o dalai-lama na internet. Pequim pune também as empresas pelo comportamento de seus governos e, à medida que a influência econômica da China aumenta, também cresce este tipo de pressão.
Este “poder penetrante” no comércio é um complemento do “poder duro” de suas Forças Armadas. Nesse setor, a China se comporta como superpotência regional inclinada a tirar os EUA do Leste da Ásia. O ritmo de modernização e investimentos para o Exército chinês vem levantando dúvidas quanto ao antigo compromisso dos EUA de manter seu domínio na região. O Exército de Libertação do Povo ainda não consegue derrotar os EUA numa guerra, mas poder implica também determinação, tanto quanto a força. Mesmo que esse desafio chinês esteja bem claro, os EUA não desejam ou não podem contê-lo.
O Ocidente perdeu sua aposta, exatamente quando suas democracias sofrem uma crise de confiança. O presidente Donald Trump viu a ameaça chinesa antes, mas sua percepção do perigo era principalmente em termos de déficit comercial bilateral, o que em si não é uma ameaça. Uma guerra comercial corroeria as normas que ele deveria proteger e prejudicaria seus aliados exatamente quando eles precisam de unidade em face à intimidação chinesa. E, apesar dos protestos de Trump, sua promessa de tornar “a América grande novamente” implica um recuo para o unilateralismo que só pode fortalecer a China.
Trump precisa reavaliar a extensão da política chinesa. A China e o Ocidente terão de aprender a viver com suas diferenças. Tolerar o mau comportamento hoje na esperança de tornar a China melhor amanhã não tem sentido. Quanto mais tempo o Ocidente tentar acomodar os abusos chineses, mais perigoso será o desafio mais tarde.
Para conter o poder penetrante da China, as sociedades ocidentais têm de ver claramente quais são os vínculos entre fundações independentes, mesmo grupos estudantis, e o Estado chinês. Para frear o mau uso do poder econômico pela China, o Ocidente deve examinar a fundo os investimentos das companhias estatais e das empresas chinesas de qualquer tipo. Deve fomentar instituições que defendem a ordem que está tentando preservar. Uma ditadura poderosa, embora frágil, não era o caminho que o Ocidente esperava que a China seguisse. Mas foi onde ela acabou.

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