Merkel, Trump e o risco de colapso da aliança ocidental

A primeira visita de Donald Trump à Europa foi embaraçosa. Seus resultados, explosivos. Falando em um comício eleitoral em Munique, logo após a partida do presidente dos Estados Unidos para Washington, Angela Merkel chegou perto de anunciar a morte da aliança ocidental.

“Os tempos em que podíamos contar plenamente com os outros, até certo ponto, acabaram. Eu vivenciei isso nos últimos dias”, disse Merkel. “Nós, europeus, precisamos tomar nosso destino em nossas mãos, em amizade com os EUA, é claro, em amizade com o Reino Unido, com outros vizinhos sempre que possível, e também com a Rússia. Mas temos de estar cientes de que precisamos lutar pelo nosso futuro nós mesmos, como europeus, pelo nosso destino”, como mostrou artigo no Financial Times, assinado por Gideon Rachman, publicado no Valor de 30/05.

As observações de Merkel ganharam rapidamente as manchetes. Richard Haass, que, como presidente do Conselho de Relações Exteriores, é o decano do “establishment” de relações exteriores americanos, postou no Twitter: “Merkel dizer que a Europa não pode contar com outros e que precisa tomar as questões com as próprias mãos é um divisor de águas – e é o que os EUA tentam evitar desde a Segunda Guerra Mundial.”

É fácil responsabilizar Trump por essa situação. Mas, apesar da cautela dos termos de seu discurso, Merkel também foi irresponsável – ao fazer uma declaração que ameaça ampliar uma perigosa fissura na aliança atlântica.

O argumento contra Trump é mais fácil de defender. Seu desempenho na Europa foi desastroso. Em discurso à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Trump não reafirmou o Artigo 5, cláusula de defesa mútua da aliança. A omissão não foi lapso acidental, e enviou um claro recado de que o comprometimento dos EUA com a defesa da Europa não pode mais ser dado como certo. Isso, por sua vez, corre o risco de estimular a Rússia a por a Otan à prova.

Na reunião de cúpula do G-7, Trump ficou isolado ao não endossar o Acordo de Paris, sobre o clima. E foi também citado em amplos círculos como qualificando a Alemanha de “ruim, muito ruim”, pelo pecado de vender um volume excessivo de automóveis nos EUA.

Defrontada com tudo isso, e com o Reino Unido que optou por sair da UE, Merkel pode sentir que está simplesmente afirmando o óbvio ao sugerir que a Alemanha não pode mais contar com os aliados americano e britânico. No entanto, seu discurso foi um erro por, pelo menos, cinco motivos.

Primeiro, é um equívoco permitir que quatro meses de Trump ponham em dúvida uma aliança transatlântica que manteve a paz na Europa por 70 anos. O fim da Otan pode acontecer. Mas também é possível que Trump esteja fora do cargo em breve.

Segundo, o presidente dos EUA teve certa razão ao dizer que a maioria dos países europeus descumpre as metas de contribuições para cobrir os gastos militares da Otan. O comportamento de Trump na Europa foi grosseiro. Mas seu argumento de que é insustentável para os EUA arcar com quase 75% dos gastos de defesa da Otan está correto – e também foi sustentado por Robert Gates, secretário de Defesa do presidente Obama. Em vista de a Alemanha estar tomando carona nos gastos americanos, é um tanto insolente culpar os EUA de ser um aliado pouco confiável.

Terceiro, ao deixar implícito que a aliança está se desfazendo, Merkel agravou o erro cometido por Trump ao não endossar o Artigo 5.

Ambos os acontecimentos devem ter estimulado a Rússia em sua esperança de dissolver a Otan. Isso, por sua vez, torna a segurança da Europa mais incerta.

Quarto, Merkel foi insensata e injusta de incluir no mesmo grupo o Reino Unido e os EUA de Trump. Nas discussões em torno da mudança climática, o Reino Unido se aliou com a União Europeia (UE), e não com os EUA. O governo de Theresa May se desdobra em enfatizar o comprometimento do Reino Unido com a Otan.

Mas, se Merkel der continuidade às negociações do Brexit com o mesmo espírito de confronto – exigindo que o Reino Unido se comprometa com pagamentos adiantados, antes mesmo de discutir acordo comercial -, ela se arrisca a criar uma profecia autorrealizada e um antagonismo duradouro entre o Reino Unido e a UE.

É difícil entender como o Reino Unido poderá ver os mesmos países como adversários nas negociações do Brexit e como aliados no contexto da Otan. Portanto, um Brexit realmente radical pode colocar em questão o compromisso do Reino Unido com a Otan – especialmente se os EUA também estiverem recuando da aliança.

O último erro do enfoque de Merkel é o fato de ele ter ostentado uma atípica surdez para com os ecos da história. Uma das coisas impressionantes na Alemanha contemporânea é que, mais do que qualquer outro país que consigo imaginar, ela pensou seriamente nas lições da história e as aprendeu com esmero e humildade. Portanto, é desconcertante que uma dirigente alemã possa anunciar, de uma barraca de cerveja na Bavária, uma separação do Reino Unido e dos EUA agrupando, ao mesmo tempo, esses dois países à Rússia. As ressonâncias históricas deverão ser arrepiantes.

Não se pretende com nada disso sugerir que Merkel ocupa o mesmo patamar moral e político que Trump. O presidente americano exibiu, reiteradamente, desprezo pelos principais valores ocidentais – desde a liberdade de imprensa até a proibição à tortura, passando pelo apoio às democracias do mundo inteiro.

Em decorrência disso, alguns chegaram até a proclamar que a premiê alemã é atualmente a verdadeira líder do mundo ocidental. O título foi concedido prematuramente. A triste realidade é a de que Merkel parece estar pouco interessada em lutar para salvar a aliança ocidental.

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