Kim se revelou mais negociador do que Trump

O encontro surreal entre Donald Trump e Kim Jong-un em Cingapura, na noite de anteontem, pode ser melhor representado pela performance do astro do basquete americano Dennis Rodman. Usando seu boné de beisebol vermelho com os dizeres “Make America Great Again” (“Torne os EUA grandes novamente”), óculos escuros e uma camiseta de um patrocinador de uma criptomoeda usada nas transações legais de maconha nos EUA, Rodman debulhou-se em lágrimas diante das câmeras da CNN, enquanto declarava que o 12 de junho foi um grande dia para o mundo inteiro.
A tortuosa entrevista coletiva dada por Trump após o encontro só serviu para reforçar a aura de espetáculo televisivo. Em mais de uma hora de gracejos com jornalistas que lotavam a sala, o presidente dos EUA revelou uma lista de concessões americanas que foram muito além do que qualquer coisa que Kim Jong-un poderia imaginar, como mostrou matéria do Financial Times, assinada pro Jamil Anderlini, publciad no Valor de 13/06.
Junto com a promessa de acabar com as manobras militares conjuntas com a Coreia do Sul, Trump disse acreditar que um acordo formal de paz entre as duas Coreias será assinado em breve e sinalizou seu forte desejo de, em algum momento, remover cerca de 30.000 soldados americanos estacionados na Coreia do Sul (que parece não ter sido consultada antes de Trump ter decidido unilateralmente acabar com as manobras conjuntas).
Nesse contexto, o curto comunicado conjunto assinado pelos dois homens só pode ser interpretado como uma vitória para o ditador norte-coreano. Além dos fracos compromissos assumidos pelos dois lados de estabelecer novas relações e trabalhar para buscar a paz, o documento obriga Pyongyang a apenas “trabalhar para completar a desnuclearização da península coreana”.
Trump preferiu ignorar o fato de que o regime de Kim interpreta essa frase como remoção do guarda-chuva nuclear que a América oferece à Coreia do Sul, em troca da desnuclearização do Norte. Ao esboçar as concessões que obteve de Kim, o presidente americano reclamou por não ter tido tempo suficiente neste encontro para firmar um acordo mais amplo de desnuclearização.
Trump se ateve ao compromisso de Pyongyang de devolver os restos mortais de soldados americanos mortos ou capturados na Guerra da Coreia e falou vagamente sobre a promessa de Kim de destruir um local de testes de motores de mísseis em algum momento no futuro. As duas promessas não têm sentido do ponto de vista de Kim.
Trump disse que as duras sanções contra a Coreia do Norte não serão levantadas enquanto não houver um avanço real em relação à desnuclearização. Mas a aplicação dessas sanções está em grande parte nas mãos da China, a maior benfeitora e parceira comercial da Coreia do Norte. Ontem um porta-voz do governo chinês insistiu que as sanções serão relaxadas pare recompensar o empenho norte-coreano na busca pela paz.
Se Trump mudar de ideia e tentar intensificar novamente as sanções, agora é bastante improvável que a China se mostre disposta a fiscalizar seu cumprimento. Pequim assistiu esse encontro nos bastidores, mas vai comemorar a afirmação de Trump de que ele vai reduzir as tropas na Coreia do Sul e cancelar as manobras militares conjuntas, que ele classificou de “muito caras” e “muito provocadoras”. Um dos objetivos mais almejados da China é a eventual remoção das tropas americanas de sua vizinhança.
À certa altura na entrevista, Trump deu algumas pistas sobre sua mentalidade, quando pediu a todos que “pensem sob o ponto de vista imobiliário”. Ele aconselhou Kim a imaginar o potencial de suas “praias maravilhosas” se ele parar de usá- las para exercícios de artilharia e erguer condomínios nelas em vez disso.
Enterrado nessa fantasia está o ponto válido de que a Coreia do Norte tem muito a ganhar se conseguir o apoio dos EUA e seus vizinhos capitalistas para ajudar a restaurar sua devastada economia comunista. Mas se ela conseguir ajuda para construir sua economia, mantendo ao mesmo tempo suas armas nucleares, isso certamente é uma opção preferível.
É bem possível que Trump retorne aos EUA e mude de ideia sobre algumas das promessas que fez. É também possível que sua aparente grande demonstração de boa vontade em relação ao ditador leve a concessões reais da parte de Pyongyang. Mas por enquanto, Kim vem se mostrando um negociador mais astuto.

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