Guerra EUA­ China é reversão da globalização

É um “grande erro” considerar os atuais conflitos comerciais entre EUA e China como uma questão puramente ligada ao presidente americano, Donald Trump, diz o economista Michael Pettis. Professor de finanças da Universidade de Pequim, Pettis afirma que as tensões já vêm de muito tempo, avaliando que elas seriam crescentes mesmo se a democrata Hillary Clinton tivesse vencido as eleições em 2016. “Na verdade, acredito que nós estamos no começo de um processo mais longo de reversão parcial dos muitos anos de globalização”, diz ele. “Há um crescente sentimento anti-China ao redor do mundo, e as ações de Trump têm que ser vistas como parte disso”.

Para ele, há “problemas reais” com o regime de comércio global. “Eles têm criado distorções prejudiciais à economia global que forçam vários países, tanto superavitários quanto deficitários, a escolher entre dívida crescente e desemprego crescente”, opina o economista. O ponto é que, se as economias crescem mais, o endividamento aumenta.

Pettis diz que já não via com otimismo a trégua na guerra comercial entre EUA e China mesmo antes da prisão no Canadá da chinesa Meng Wanzhou, executiva da Huawei. Ele considera que não se deve tirar muitas conclusões do incidente em si, mas afirma que o timing foi muito infeliz, por colocar Pequim sob uma forte pressão doméstica. “Eles precisam ser vistos respondendo agressivamente, mas ao mesmo tempo não querem a escalada das tensões comerciais.”

Ao falar dos efeitos da guerra comercial entre EUA e China, Pettis diz que, no curto prazo, ela vai aumentar a incerteza e prejudicar a economia global, como já se pode notar. “No longo prazo, acho que as consequências são muito mais complexas. Para países como os EUA ou o Reino Unido, com mercados de capitais completamente abertos e forte governança corporativa, o regime atual de comércio mundial significa que eles têm déficits comerciais persistentes, à medida que o excesso de poupança ao redor do mundo flui continuamente para os seus sistemas financeiros”, diz Pettis.

“Isso mina as suas economias, ao forçar o crescimento da dívida. Se a consequência dessas tensões comerciais for um ajuste no regime de comércio global em que os países superavitários sejam forçados a distribuir renda de modo a reduzir as suas deficiências na demanda doméstica, seria bom para o mundo e especialmente bom para países como os EUA.” Ao mesmo tempo, isso colocaria pressões crescentes sobre os países com superávits, como a China.

Pettis diz ser “muito claro que a China tem muito mais a perder” com a guerra comercial com os EUA. Segundo ele, o país asiático tem “um superávit comercial por causa de distorções no modo como sua renda doméstica é distribuída, o que torna impossível para o país absorver tudo o que produz.” A maior parte da renda chinesa vai para os governos locais e para os muito ricos, afirma Pettis. “O resultado é que as famílias comuns recebem a menor fatia do PIB do que em qualquer país do mundo.” A solução é redistribuir a renda para aumentar a fatia recebida pelos cidadãos chineses comuns, algo que as autoridades sabem ser necessário desde 2007, afirma o economista. O problema é que não se trata de algo simples. “Como é muito duro reequilibrar a economia rapidamente, a guerra comercial coloca uma pressão insuportável sobre Pequim.”

Na conversa, Pettis afirma ainda que “as pessoas no exterior subestimam o quão graves são os problemas econômicos domésticos da China, e o quanto excessivamente dependentes eles são de um crescimento extraordinário da dívida para manter a economia num ritmo aceitável”. Cerca de 45% de toda a dívida criada nos últimos cinco a dez anos é chinesa, diz Pettis, pesquisador-sênior não residente do centro de estudos Carnegie Endowment for International Peace. A seguir, a entrevista, realizada numa troca de e-mails.

Valor: Em que medida a prisão da executiva da Huawei no Canadá ameaça a trégua na guerra comercial entre EUA e China? O sr. estava otimista em relação à trégua antes do incidente?

Michael Pettis: Não, e há anos tenho dito que as tensões comerciais só podem piorar. Há problemas reais com o regime de comércio global. Eles têm criado distorções prejudiciais à economia global que forçam vários países, tanto superavitários quanto deficitários, a escolher entre dívida crescente ou desemprego crescente. O timing da prisão da executiva da Huawei foi muito infeliz, mas não acho que muita coisa pode ser interpretada a partir disso. Pelo que eu entendo, o pedido de prisão foi emitido há vários meses, e apenas na semana passada os planos de viagem de Meng Wanzhou permitiram que ele fosse executado. No entanto, isso coloca Pequim sob uma pressão doméstica extraordinária. Eles precisam ser vistos respondendo agressivamente, mas ao mesmo tempo não querem a escalada das tensões comerciais.

Valor: A trégua na guerra comercial foi anunciada no começo do mês, mas desde então Donald Trump disse que é um “homem tarifa”, mandando um recado para a China, e a prisão da executiva da Huawei veio a público. Como esses acontecimentos vão impactar as negociações entre Trump e Xi Jinping?

Pettis: Acho que esses eventos dão menos espaço para Xi Jinping negociar um acordo aceitável sem parecer fraco na China. Se ele fracassar em responder agressivamente, isso vai dar aos seus muitos inimigos domésticos uma chance real de intensificar as críticas escondidas à sua liderança.

Valor: Quais são as principais consequências da guerra comercial entre EUA e China para os dois países e para a economia global?

Pettis: No curto prazo, vai aumentar a incerteza e prejudicar a economia global, como já se pode ver. No longo prazo, acho que as consequências são muito mais complexas. Para países como os EUA ou o Reino Unido, com mercados de capitais completamente abertos e forte governança corporativa, o regime atual de comércio mundial significa que eles têm déficits comerciais persistentes, à medida que o excesso de poupança ao redor do mundo flui continuamente para os seus sistemas financeiros. Isso mina as suas economias, ao forçar o crescimento da dívida. Se a consequência dessas tensões comerciais for um ajuste no regime de comércio global em que os países superavitários sejam forçados a distribuir renda de modo a reduzir as suas deficiências na demanda doméstica, seria bom para o mundo e especialmente bom para países como os EUA. Mas isso colocaria tremendas pressões sobre os países superavitários. Se eles fracassarem em se ajustar suficientemente rápido, poderão sofrer consequências graves.

Valor: Qual é o principal motivo atrás das medidas comerciais adotadas por Trump? Protecionismo puro ou uma tentativa de evitar que a China supere os EUA como a principal superpotência econômica e geopolítica?

Pettis: Infelizmente acho que muito da conversa sobre comércio é realmente sobre restringir [a atuação da] China mais do que sobre comércio. A Alemanha, por exemplo, é uma infratora bem pior que a China no comércio, mas conseguiram evitar o peso total das ações de Trump. Há um crescente sentimento anti-China ao redor do mundo, e as ações de Trump têm que ser vistas como parte disso.

Valor: O sr. acha que a guerra comercial entre EUA e China vai durar muito tempo ou apenas enquanto Trump estiver no poder?

Pettis: É um grande erro ver os atuais atritos comerciais como uma questão puramente ligada a Trump. Era algo que estava para vir há muito tempo, e mesmo se Hillary Clinton tivesse vencido as eleições acho que hoje haveria tensões comerciais crescentes. Na verdade, acredito que nós estamos no começo de um processo mais longo de reversão parcial dos muitos anos de globalização.

11/12/2018 Disputa EUA-China vai além de Trump e inclui uma revisão da globalização

https://www.valor.com.br/imprimir/noticia_impresso/6019963 2/3

Valor: Muitos analistas tentam avaliar qual o impacto de uma guerra comercial sobre a economia chinesa. Em agosto, porém, o sr. escreveu um artigo dizendo que esse esforço é “totalmente inapropriado” para a China. Por quê?

Pettis: Eu disse que era inapropriado presumir que uma guerra comercial causará uma desaceleração do crescimento do PIB da China, porque o crescimento do PIB da China não é um “produto”, determinado pelo comportamento natural da economia. É um “insumo” politicamente determinado, decidido no começo do ano como a meta de crescimento do PIB, e Pequim exige que os governos locais tomem emprestado tanto quanto for necessário para atingir essa meta. O ponto é que, enquanto eles puderem tomar empréstimos, o PIB da China será o que Pequim decidir. Esse é o motivo pelo qual o impacto real da guerra comercial sobre a China não será um crescimento mais baixo, mas sim um crescimento mais elevado da dívida. O ritmo de expansão da China está certamente desacelerando, e vai desacelerar muito mais em 2019, mas o motivo não é a guerra comercial. É porque os níveis da dívida são tão altos que Pequim se tornou extremamente apreensiva e finalmente está tentando controlá-los. Essa desaceleração tem sido esperada há muito tempo e teria ocorrido mesmo sem a guerra comercial, embora obviamente as tensões comerciais tornem a situação mais difícil para Pequim. Na verdade, eu suspeito que, se não fosse o aumento das tensões comerciais, as autoridades chinesas teriam agido de modo mais decisivo sobre a dívida e permitido que o crescimento do PIB tivesse perdido ainda mais força.

Valor: A China tem as ferramentas adequadas para se contropor à escalada das tensões comerciais com os EUA? Pettis: Numa guerra comercial, os países superavitários são sempre os mais vulneráveis e acho que a China entende isso.

Esse é o motivo pelo qual eles estão ansiosos para evitar a escalada das tensões comerciais.

Valor: O sr. escreveu em julho que “a ideia de que todos os países perdem numa guerra comercial é ininteligível”. Na atual guerra comercial, quem é o maior perdedor? A China ou os EUA?

Pettis: É muito claro que a China tem mais a perder. A China tem um superávit comercial por causa de distorções no modo como sua renda doméstica é distribuída, tornando impossível para o país absorver tudo o que produz. A maior parte da renda chinesa vai para os governos locais e para os muito ricos, e o resultado é que as famílias comuns recebem a menor fatia do PIB do que em qualquer país do mundo. Esse é o motivo pelo qual os chineses simplesmente não conseguem consumir uma fatia substancial do que produzem, e são forçados a exportar o excesso, se não quiserem fechar fábricas e demitir trabalhadores. A solução para a China é redistribuir renda de uma maneira que aumente significativamente a fatia recebida pelos chineses comuns. Pequim sabe dessa questão há mais de uma década e prometeu fazer isso desde o começo de 2007, mas está se tornando politicamente muito difícil alcançar essa redistribuição de renda e, embora as condições tenham melhorado nos últimos cinco anos, eles ainda estão piores do que estavam há dez anos. Como é muito duro reequilibrar a economia rapidamente, a guerra comercial coloca uma pressão insuportável sobre Pequim.

Valor: Os EUA e a China estão à beira de uma nova guerra fria?

Pettis: Infelizmente, acho que nós já estamos num tipo de guerra fria, embora acredite que já vimos o pior dela e que em breve ela vá perder força, especialmente à medida que a China for forçada a lidar com o ajuste econômico doméstica cada vez mais difícil. As pessoas no exterior subestimam o quão graves são os problemas econômicos domésticos da China, e o quanto excessivamente dependentes eles são de um crescimento extraordinário da dívida para manter a economia num ritmo aceitável. Aproximadamente 45% de toda a dívida criada nos últimos cinco a dez anos é chinesa.

Valor: O sr. vê algum risco de conflito militar entre os EUA e a China?
Pettis: Não, acho que isso é muito improvável.
Valor: Quais são os principais impactos da guerra comercial entre os EUA e a China sobre o Brasil?

Pettis: É difícil dizer porque eles tendem a ser mistos. Nós veremos um aumento significativo da incerteza no setor agrícola – especialmente à medida que a negociação política crescentemente substitua a eficiência como o determinante das importações agrícolas chinesas, por exemplo. Mas, de um modo ou de outro, acho que o Brasil estará melhor se se preparar para um longo período em que os benefícios da globalização serão questionados ao redor do mundo, e os fluxos comerciais e de capitais forem cada vez mais restringidos.

https://www.valor.com.br/internacional/6019963/disputa-eua-china-vai-alem-de-trump-e-inclui-uma-revisao-da-globalizacao#

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