Guerra comercial elevaria o risco de uma guerra EUA­ China

As bases do relacionamento entre os EUA e a China ruíram na semana passada. Os principais motivos foram a guinada dos EUA rumo ao protecionismo e a inclinação da China em direção a um governo de um homem só.
Nos últimos 40 anos, as duas maiores economias do mundo se engajaram na globalização com base no entendimento de como seria o comportamento do outro país. Os chineses pressupunham que os EUA continuariam a apoiar o livre comércio. Os americanos acreditavam que a liberalização econômica da China levaria, em algum momento, à liberalização política.
Ambas as suposições agora foram estilhaçadas. No domingo, na China, o Congresso Nacional do Povo avalizou mudança constitucional que permitirá ao presidente Xi Jinping governar sem limite de prazo. Três dias antes, o presidente dos EUA, Donald Trump, havia anunciado tarifas sobre a importação de aço e alumínio e tuitado que “guerras comerciais são boas e fáceis de vencer”, como mostrou texto de Gideon Rachman, no Financial Times , publicado no Valor de 13/03
A confiança entusiasmada de Trump ignora, contudo, os perigos envolvidos quando se desencadeia uma guerra comercial. Esses riscos não são simplesmente econômicos: uma guerra comercial torna mais provável que, algum dia, os EUA e a China deslizem para uma guerra de verdade.
Até agora, as ambições geopolíticas de uma China em ascensão vinham sendo contidas pela necessidade de manter os mercados ocidentais abertos. Se o protecionismo dos EUA der uma escalada, então os cálculos da China vão mudar. Há grandes chances, de fato, de que as tarifas de Trump sejam apenas a salva de abertura de uma guerra comercial. As medidas anunciadas na semana passada foram de natureza generalizada e vão causar relativamente pouco dano direto à China. Porém, tarifas futuras, particularmente se baseadas em questões de propriedade intelectual, provavelmente vão apontar a mira com mais precisão para os chineses. Afinal, Peter Navarro, chefe de comércio exterior da Casa Branca, é autor de um livro chamado “Death by China” (morte causada pela China, em inglês).
A afronta econômica dos EUA à China chega ao mesmo tempo em que Pequim se mostra cada vez mais confiante e intensifica a sua própria afronta ideológica e geopolítica à Washington. Na era Xi, a China iniciou um programa ambicioso de “construção” de ilhas no Mar do Sul da China, para reforçar suas reivindicações territoriais e marítimas. O objetivo mais amplo é acabar com o domínio dos EUA no Pacífico ocidental – por onde passam as rotas comerciais marítimas mais importantes do mundo.
Ao mesmo tempo, o novo autoritarismo de Pequim vem sendo propagandeado não apenas como o método de governo mais adequado para a China, mas também como modelo mundial alternativo à democracia ocidental.
À medida que os dois países se inclinam para um confronto comercial, territorial e ideológico, é provável que também cresça a sensação de descontentamento de ambos os lados. Os presidentes da China e EUA são nacionalistas. Frequentemente dão vazão a sentimentos de orgulho nacional ferido. Trump sustenta que o mundo está rindo dos EUA e que a China violentou os EUA. Xi prometeu conduzir um “grande rejuvenescimento” do povo chinês – que vai finalmente enterrar o “século de humilhação” iniciado em 1849, quando o país foi invadido e parcialmente colonizado.
A emergência de líderes como Trump e Xi é reflexo de mudanças ideológicas mais amplas nos dois países. Um período de 30 anos de salários reais estagnados ou em declínio para a maioria dos trabalhadores americanos corroeu a crença nos benefícios da globalização e do livre comércio nos EUA. Trump foi a voz protecionista mais potente na campanha presidencial em 2016, mas até sua oponente, Hillary Clinton, viu-se obrigada a repudiar a Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), que ela outrora havia defendido.
Sucessivos presidentes americanos também acreditaram que o capitalismo seria uma espécie de cavalo de Tróia, que desgastaria por dentro o governo de partido único da China. Como disse certa vez o presidente americano George W. Bush, “que se comercialize livremente com a China e o tempo estará do nosso lado”. O establishment americano acreditava que uma China mais liberal estaria menos propensa a desafiar os EUA no cenário internacional. Um dos pilares centrais do internacionalismo liberal é que as democracias não entram em guerra entre si.
Desdobramentos políticos na China de Xi, porém, contradizem a visão de mundo liberal internacionalista que moldou sucessivas presidências americanas. A China não se tornou mais democrática. Também deixou de estar disposta a viver silenciosamente dentro de uma ordem mundial dominada e arquitetada pelos EUA.
Essas mudanças são reflexo da crescente percepção de maior de poder nacional dentro da China, que tem destacado novas ideias e pensadores. Na era pré-Xi, os líderes e acadêmicos chineses gostavam de ressaltar a dependência mútua entre seu país e os EUA. O argumento convencional era o de que o rápido desenvolvimento da China se materializava no contexto de um mundo dominado pelos EUA – e, portanto, havia pouco sentido em contestar os EUA. Mas essa versão chinesa de internacionalismo liberal não é mais consenso em Pequim. Recentemente, intelectuais chineses começaram a argumentar que “a ordem mundial encabeçada pelos EUA é um terno que deixou de servir”, nas palavras de Fu Ying, presidente do comitê de assuntos internacionais do Congresso Nacional do Povo.
Essa nova combinação de protecionismo e nacionalismo nos EUA e de uma China nacionalista e assertiva é potencialmente explosiva. Mas há certos aspectos da ideologia de Trump que podem tornar um conflito menos provável.
Diferentemente de seus antecessores recentes, Trump tem menos interesse em promover a democracia no exterior. Provavelmente, não vai perder o sono por preocupações com os passos de Xi rumo a um governo de um homem só. Na verdade, ele pode até vir a invejá-lo.
http://www.valor.com.br/internacional/5380721/guerra-comercial-elevaria-o-risco-de-uma-guerra-eua-china#

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