Europa tem de aprender a usar seu poder

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, podem até ter evitado uma guerra comercial no mês passado, mas os desafios com que a União Europeia (UE) se defronta estão longe de terem sido solucionados. No ambiente mundial cada vez mais hobbesiano de hoje, a UE só conseguirá sobreviver se aumentar sua capacidade de projetar poder – uma proeza nada fácil para uma entidade formada justamente como um repúdio à política de poder.
Com o Tratado de Roma, de 1957, a Europa se desfez do que restava de seu impulsos militaristas e se concentrou na construção de um tentacular e pacífico mercado único. A partir de então, o único meio de projetar poder da Europa seria sua política comercial. Mas essa política nunca foi orientada pelo pensamento estratégico, e isso deixou a UE com uma influência mundial apenas limitada, apesar de seu extraordinário sucesso nos mercados mundiais. Chegou a hora de a Europa se reconsolidar como um verdadeiro participante mundial, não por meio da tentativa de imitar uma superpotência clássica, e sim por meio da consolidação e mobilização de tipos diferentes de poder, m artigo de Zaki Laïdi, publicado no Valor de 17/8.
A Europa já possui considerável poder normativo – ou seja, a capacidade de criar padrões mundiais através do chamado efeito Bruxelas – que pode ser sentido em seus esforços de deter as empresas tecnológicas. A recentemente sancionada Regulação Geral de Proteção de Dados, por exemplo, criou diretrizes para a coleta e o processamento de informações pessoais de pessoas físicas no âmbito da UE.
Mas a UE muitas vezes deixou de reconhecer seu poder normativo, mais ainda de tirar pleno proveito dele. Esse fator ao mesmo tempo reflete e reforça sua fragilidade em três áreas: autoestima, consciência do risco e capacidade de ação.
A autoestima abarca a convicção de que a UE é um empreendimento valioso, a confiança de expressar isso publicamente e o reconhecimento do verdadeiro potencial da UE de projetar poder. Essa externalização está gravemente ausente em muitas partes da UE, a começar pela Alemanha, que, apesar de ter reconquistado a confiança em seu próprio futuro, guarda zelosamente seus recursos.
A pouca disposição da Europa de fomentar e de mobilizar sua influência contrasta fortemente com o uso afirmativo, pelos EUA, de seu poder de mercado para promover seus interesses e preferências. Por exemplo, desde que Trump anunciou sua decisão de retirar os EUA do Plano de Ação Conjunto Abrangente (JCPOA) – mais conhecido como o acordo nuclear com a Irã – e de readotar sanções ao Irã, muitas empresas europeias, temendo perder acesso ao mercado americano, resolveram se retirar do país.
A escalada das tensões entre Europa e os EUA, está deteriorando a cooperação destinada a deter a China. Em vez de esperar que outros resistam à demolição, pelo governo Trump, das estruturas multilaterais, a Europa precisa tomar a iniciativa, idealizando um sistema sem os EUA
Para convencer as empresas europeias a permanecer no Irã, a Comissão Europeia atualizou a Regulação de Bloqueio de 1996, que proíbe que participantes sob a jurisdição da UE cumpram sanções extraterritoriais, permite que empresas recuperem prejuízos decorrentes dessas sanções e anula na UE os efeitos do julgamento de qualquer tribunal externo baseado nelas. Mas a atualização se mostrou ineficaz, como ficou evidenciado pela situação enfrentada pela Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (Swift), o sistema de envio seguro de mensagens usado para transações financeiras mundiais transfronteiras.
Como o Irã descobriu em 2012, perder acesso à rede Swift significa, essencialmente, perder acesso ao sistema financeiro internacional. Mas essa é justamente a exigência dos EUA: se o Swift não excluir o Irã até o começo de novembro, enfrentará contramedidas. O cumprimento do Swift a essa exigência praticamente destruirá qualquer incentivo que ainda possa restar para o Irã permanecer no JCPOA. Isso significará grande fracasso político para a Europa, pois o Swift está sob jurisdição da UE.
A Europa, além disso, tem demonstrado uma autodestrutiva falta de confiança no euro. Embora o euro seja a segunda moeda mais importante do mundo, ela perde para o dólar em quase todos os indicadores, o que aumenta a vulnerabilidade da UE a sanções comerciais dos EUA.
A segunda fragilidade que a UE precisa enfrentar é a consciência do risco. Por exemplo, a China necessita de acesso à tecnologia industrial europeia para concretizar suas ambições econômicas, e necessita de acesso aos portos europeus para concluir sua “Iniciativa do Cinturão e da Rota” (BRI). Mas a Europa está se permitindo ser, na prática, saqueada, especialmente pela tomada de controle, pela China, de portos e aeroportos. As relações UE-China têm de passar a ser mais pautadas pela reciprocidade, com a UE – e, em especial os países do sul e do leste europeu que receberam de braços abertos os investimentos chineses – reconhecendo os riscos de segurança representados pelas atividades da China.
Para que isso ocorra, no entanto, a Europa precisará dar um tratamento mais unificado à Rússia, que, embora represente uma ameaça menor à UE do que a China, adora salientar – e exacerbar – suas divisões internas. Como se pode culpar a Grécia por vender portos aos chineses, quando a Alemanha executa o oleoduto Nord Stream 2, que aumentará a dependência energética europeia em relação à Rússia?
Acrescente-se a tudo isso o complicador da escalada das tensões entre Europa e os EUA, que, entre outras coisas, está deteriorando a cooperação destinada a deter a China. É aí que entra a capacidade de ação. Em vez de esperar que outros resistam à demolição, por Trump, das estruturas multilaterais, a Europa precisa tomar a iniciativa, idealizando um sistema sem os EUA.
Isso significa não apenas garantir a possibilidade de o regime de comércio internacional sobreviver sem os EUA como também desenvolver um potencial militar capaz de elevar a credibilidade geopolítica da UE e de mudar a correlação de forças mundial. Nesse aspecto, a iniciativa do presidente da França, Emmanuel Macron, de criar uma força militar europeia fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) é essencial. Seu sucesso dependerá de um enfoque unificado, colaborativo que potencialmente inclua até mesmo o Reino Unido. A dificuldade é evidente. Mas o benefício, para a UE e o mundo, valerá o esforço.

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