Um ano que nos livrou da solidão

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Era na casa de Pelayo e Elisenda, no Caribe. Chovia há dias e entre os incontáveis caranguejos, o mar havia trazido um náufrago, “um senhor muito velho com umas asas enormes”. Como o menino de Pelayo e Elisenda estivesse doente, todos acharam que era um anjo que viera buscar o menino.

Era uma vez um povoado modorrento e pobre, nos confins da zona bananeira da Colômbia, onde a United Fruit controlava praticamente toda a economia local. Era uma vez um menino. E esse menino tinha um avô que lhe contava histórias sobre coisas estranhas que aconteciam no povoado. O avô morreu quando o menino tinha 8 anos. Mas a breve convivência foi suficiente para alimentar o imaginário do menino e dar-lhe a matéria para dezenas de contos, novelas e romances que o tornariam o escritor mais lido em castelhano desde Miguel de Cervantes.

O povoado era Aracataca e o menino (com nome de anjo), Gabriel García Márquez. Ou simplesmente Gabo. Aracataca se transformou em Macondo e o real e o fantástico passaram a coexistir no mesmo plano de realidade. Navios fantasmas, a mulher que comia terra, ciganos que deslumbraram as pessoas apresentando-lhes o gelo e o ímã. A avó desalmada que atravessou o país prostituindo a neta, o casal que esperou uma vida inteira para se unir, a cidade em que todos os moradores perderam a memória. E há, obviamente, a estirpe dos Buendía, entregue às suas obsessões, numa infinita genealogia que evoca as novelas de cavalaria. Macondo é o cenário de CEM ANOS DE SOLIDÃO, mas aparece também em várias outras narrativas do escritor colombiano. E as histórias que se dão em outros lugares, na zona do Caribe, não são menos estranhas e fantásticas.

Em Macondo tudo é possível. As paixões são arrebatadoras, as pessoas multiplicam-se como coelhos, todos comem e bebem para além de todos os limites… Curiosamente, neste mundo superlativo, não há lugar para uma aproximação maior entre os homens, os excessos espantam qualquer gesto de solidariedade e uma solidão coletiva toma conta de todos. Essa talvez seja a alegoria maior da obra de García Márquez: Macondo é a América Latina, há duzentos anos subjugada por ditaduras sangrentas patrocinadas pelo poder estrangeiro e pelas elites locais, e entregue à miséria, à fome e ao atraso. A tristeza e a solidão de seus habitantes, que acabam todos desmemoriados, é a nossa modorrenta realidade, as nossas riquezas econômicas solapadas pelas multinacionais, nossa liberdade asfixiada por tantos ditadores.

A arte, ao criar universos fictícios, tem o poder de aclarar a chamada “realidade concreta” e mostrar os possíveis que podemos alcançar, tanto como indivíduos como coletividades. Agora mesmo, quando finalmente o senhor muito velho que apareceu no quintal de Pelayo e Elisenda, conseguiu ganhar alturas e acaba de sobrevoar nossas cabeças, transfigurado no anjo Gabo que, com suas histórias, nos arrancou para sempre da solidão.

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