Tristão e Isolda: amor, morte e beleza

Pedro de Santi

“Tristão e Isolda” é um mito medieval, de origem celta. Richard Wagner compôs uma ópera a partir dele, em 1865, e ela se tornou um dos grandes clássicos do romantismo alemão. Seu prelúdio e a ária da “Morte do amor”, cantada por Isolda ao final, são seus pontos altos e frequentemente executadas juntas, em concerto.

O tema central é o amor impossível e o encontro fusional que culmina na morte. Nós que vamos aprendendo a lidar com os amores possíveis- cheios de diferenças, negociações e acordos- valorizando-os como o que de melhor podemos conquistar na vida, agradecemos ter o recurso da arte. Nela, ao menos, o ideal pode existir, o sublime ganhar forma. Podemos, ainda que só como catarse, gozar de um pouco de perfeição platônica.

Mas vamos à história. Isolda está prometida em casamento e Tristão é justamente aquele encarregado de levá-la ao futuro marido. Ele matara seu antigo noivo e se ferira. Disfarçado, pede pela ajuda de Isolda, que o salva. Desde este momento, ambos se sentem atraídos. Mas o desejo de vingança de Isolda a faz repelir seu sentimento e a lealdade ao Rei Marc, seu tio e futuro noivo de Isolda, refreia Tristão.

A ópera se inicia no navio que os leva ao encontro do Rei Marc. Isolda procura envenenar Tristão por vingança, mas, por um engano, acaba lhe dando uma poção amorosa. O interesse anterior se expande em paixão e os motivos em contrário se dissolvem. Ainda no navio, seu amor se realiza. Tristão completa sua tarefa e a conduz ao noivo, mas eles acabam por ceder ao desejo e se encontrar escondidos. Pela denúncia de um soldado, eles são flagrados na floresta pelo rei e seus homens. Curiosamente, o velho rei Marc mais se entristece e se perde em melancolia do que clama por vingança, mas quando todos vão se retirar e o casal troca um olhar cúmplice, o soldado que os denunciara ataca Tristão e o fere de morte.

Enquanto Tristão agoniza, Isolda está ao lado de Marc, mas consegue fugir ao encontro de seu amado. Ela chega apenas a tempo de um último encontro; Tristão expira. Enquanto isto, o noivo de Isolda toma conhecimento da poção do amor e os perdoa, mas já é tarde. Isolda entrega-se à morte e, nela, reencontra o amado.

Afinal, entre a poção do amor e a da morte não havia diferença.

O Romantismo é algo como a consciência pesada do homem moderno e civilizado, que se percebe alienado da pureza e simplicidade. Melancólico e saudosista, para o romântico a vida comum é decadente, corrupta e apenas um longo caminho em busca do retorno a um estado anterior de pureza e completude, realizado na morte. A morte ganha, assim, o

sentido de libertação do fardo humano. Se a vida é espera sofrida pelo encontro fusional quando dois formarão um, ele só pode ser vivido como fim.

Histórias românticas infantis terminam com o enunciado; “e viveram felizes para sempre”. Ou seja: a história trata das peripécias em direção ao encontro perfeito; depois dele, nada mais de notável se deu. Histórias românticas adultas costumam acabar com a morte do par. Ora ao mesmo tempo, como em Romeu e Julieta ou Tristão e Isolda, quer com uma defasagem temporal, como no filme Titanic ou na expectativa do suicida Werther, que espera no futuro encontrar sua Lothe.

A morte é encontro, fusão e fim do sofrimento. Neste sentido, a morte é o final feliz.

Na história, temos a ideia de que o encontro do casal fusional tem empecilhos. Um terceiro se apresenta como alguém com quem Isolda está comprometida. Na primeira vez, Tristão mata o noivo, na segunda, isto é impossível. Ele fica dividido entre o amor à mulher e a lealdade ao Rei Marc, figura claramente paterna e envelhecida. Daí a tristeza inscrita em seu nome e tema musical. Com o perdão da psicanalisada, trata-se de uma triangulação edípica clássica. Mas o artifício da poção mágica desequilibra o conflito e o poder da lei civilizada é atropelado pelo sentimento mais primitivo e potente; a força natural que impele ao retorno ao inanimado.

Como o mito do casal foi incorporado à saga do Rei Arthur (Tristão era um de seus cavaleiros), ele pode ser a origem da triangulação amorosa e cheia de culpa entre Arthur, Guenevére e Lancelot.

Richard Wagner (1813-1883) adaptou o antigo mito de Tristão e Isolda e faz dele uma obra espetacular. Gustave Kobbé, o grande especialista em ópera do início do século XX, a considera simplesmente a maior.

Mais que fazer música, Wagner se vê num papel político e ético. Na ópera, ele vê a obra de arte total: narrativa mito, música, encenação, tudo se une e deve envolver e dissolver o espectador numa experiência embriagadora. A ópera dura, (só de música, sem os intervalos entre os três atos) quatro horas; algo praticamente insustentável para temporalidade do entretenimento contemporâneo. Boa parte de sua obra é um mergulho no trágico e uma mescla de mitologia germânica e grega. Sua última ópera Parsival, evoca a mitologia cristã. Embora a música seja maravilhosa, um antigo admirador e amigo, Friedrich Nietzsche, jamais o perdoou pela guinada carola. De toda a forma, é como se ele tivesse o anseio totalitário de fazer emergir no íntimo do espectador a força do mito arcaico, aquém de sua razão. Não é à toa que os nazistas o adoravam.

Como mestre da retórica musical, Wagner lança mão de dois recursos poederosos: em primeiro lugar, o “Leitmotiv”, o tema de cada personagem ou afeto. Eventualmente, mesmo sem a presença em cena de uma personagem, ela é evocada com seu tema. Melodias são compostas da mistura de temas evocando os mais diversos afetos. John Williams, compositor de trilhas de filmes como “Os caçadores da arca perdida”, “ET”, “Guerra nas estrelas” e muitos outros, era um grande admirador de Wagner. Assim, ele criou assinaturas sonoras inesquecíveis para os filmes. Com este recurso, a música não é apenas fundo ou acompanhamento, mas efetivo recurso narrativo, quase que uma metapersonagem. O mesmo se dá na trilha da trilogia do “Senhor dos Anéis”, composta por Howard Shore.

O outro recurso para envolver o expectador é o cromatismo e a dissolução das tonalidades clássicas. Cromatismo diz respeito ao uso de escalas feitas de meio em meio tons, produzindo um efeito de deslizamento e relativa desorientação. A partir de de um certo momento, já não se consegue definir o tom da música, que passa a fluir e desestabilizar o ouvinte. E esta mesma a intenção.

Como esta descrição não fará o menor sentido a quem não tiver alguma formação musical, remeto o leitor à cena final da ópera, quando Isolda canta a “Liebestod” (Morte do amor): aqui há mescla dos “Leitmotivs” e das escalas cromáticas sempre crescentes até um ápice de gozo, que coincide com a morte. Anexo o link de uma montagem de 1998, dirigida por Zubin Mehta, com a interpretação arrebatadora da soprano Waltraud Meier: https://www.youtube.com/watch?v=3SA2KsY0ZRI.

A sublimação pela a arte é nossa verdadeira possibilidade de transcendência.

 

Serviço: Tristão e Isolda: nono encontro do Ciclo Ópera e Paixão. Os professores Pedro de Santi e Celso Cruz apresentarão a obra e discutirão o mito, a música e a estrutura narrativa.

Dia 04/09, às 16:30 hs, no auditório Castelo Branco. Vale ACOM.

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