Transversal do tempo

Pedro de Santi

Uma nova biografia de Elis Regina é lançada no ano em que ela completaria 70 anos. Isto nos relembra que ela morreu aos 36. Como uma personagem já mítica da história de nossa música, é espantoso se dar conta do quanto ela era nova frente ao repertório e interpretação de que dispunha.

A família não interferiu no processo de escrita e publicação, embora muitos membros tenham sido entrevistados. A sua atitude foi modelar no momento em que tantos artistas e suas famílias tem colocado condições e empecilhos para a publicação de biografias. Pouco tempo depois da morte de Elis, foi publicada outra biografia- “Furacão Elis”, de Regina Echeveria- que foi importante mas sofreu mutias críticas da família e, de certa forma, sofreu da proximidade excessiva da perda da cantora.

Com liberdade, a atual biografia – “Elis Regina. Nada será como antes”, de Julio Maria- cobre a história da música brasileira de 1966 a 1982. A obra de Elis é ao mesmo tempo única e registo de época. Apesar de ser visivelmente um grande admirador da biografada, o autor não aliviou em relatar episódios pouco nobres, sobretudo no que diz respeito ao trato a outras cantoras.

Para quem se acostumou a ler as biografias escritas por Ruy Castro ou Nelson Motta, a leitura desta não é tão prazerosa. Mas a riqueza das histórias de Elis justifica em muito a leitura.

Para quem não a conhece, ou só conhece como mãe da Maria Rita, ela foi provavelmente a maior cantora da MBP. Seu gênio era terrível e sua interpretação, por vezes, exagerada, o que angariou antipatias. Mas se trata de uma voz fantástica e muito flexível, em ritmos e volumes.

Há quem diga que o dia em que ela ganhou o festival de música de 1966 cantando ‘Arrastão’ foi decretada a morte da Bossa Nova, que reinava desde a união de Vinicius de Maraes, Tom Jobim e João Gilberto no disco “Chega de Saudade”, de 1958. Sua voz aberta e gestual over, deixava para trás o banquinho, o violão e a voz contida. Ela anunciava a MPB, ao lado de seus grandes compositores que apareciam naquele mesmo período (Chico Buarque, Caetano, Gil. Miltom, Edu Lobo). E trazia o vozeirão das cantoras da era do rádio, sobretudo Angela Maria, e a dramaticidade do samba canção, como na voz de Maisa. Aliás, o livro conta um encontro explosivo entre ambas. Mas o banquinho e o violão da canção ‘Corcovado’ também tiveram lugar num disco primoroso gravado com Tom Jobim, em 1974.

As gravações do fim dos anos 70, como no disco ao vivo ‘Transversal do tempo’ retratam o espírito dos últimos anos da ditatura, dentro da qual está contida toda sua carreira, assim como os melhores anos da MPB, ironicamente. Em 1979, o samba ‘O bêbado e o equilibrista’ de João Bosco e Aldir Blanc se tornou um hino ao retorno dos exilados políticos. No início dos anos 80, Elis gravou um som pop suingado, como em ‘Vivendo e aprendendo a jogar’, numa parceria com um namorado inusitado: Guilherme Arantes.

De minha parte, só descobri de fato a música de Elis depois de sua morte. Em pouco tempo passei a admirar voz, repertório e arranjos, sobretudo os de Cesar Camargo Mariano.

Hoje, ouço bastante os discos gravados em 72 e 76 (Os discos que só levavam o nome dela, como “Elis”, 1972, 1973 e 1974; “Elis e Tom”, 1974; “Falso brilhante”, 1976) e, confesso, acho mesmo over uma parte dos últimos trabalhos. Quando ouço os discos, considero estar entrando nas transversais daquele tempo e reencontrando climas, ambientes e pessoas.

Lembro-me da notícia de sua morte pela televisão: o choque, o inevitavel sensacionalismo envolvendo a hipótese de suicídio e do envolvimento com drogas. Algo muito parecido com o que se deu com a morte de Cassia Eller, há pouco mais de 10 anos.

Ambas, aliás, contam para nós a história de vidas intensas e da desmesura talvez intrínseca à criação verdadeira. Mulheres poderosas aos nossos olhos e inseguras aos próprios, de quem ganhamos tanto.

Se um novo ouvinte se der o trabalho de explorar a obra de Elis, vai saber que ela não é a mãe da Maria Rita; a Maria Rita é que é a filha dela.

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