Tolerância ao outro

Pedro de Santi

Nas últimas semanas, colocamos à prova de forma radical nossa capacidade de lidar os com diferenças culturais e alteridade. A auto-censura da Sony no lançamento de um filme que satirizava o ditador da Coreia, por medo de ameaças; o atentado que matou 12 pessoas no jornal francês Charlie Hebdo e mais 5 até o dia seguinte; e a execução de um brasileiro por tráfico de drogas, na Indonésia. O dois primeiros envolvem terrorismo, o terceiro, a lei de um país.
Certamente, quase todos consideramos o tráfico de drogas um crime hediondo. Em proporção menor, a maioria das pessoas parece ser contra a pena de morte. Consideramos também razoável respeitar a soberania da legislação de um país. Ficaríamos assim: aqui em casa, não há pena de morte (há quem diga que haja, na forma de execução de criminosos de classes desfavorecidas), mas na casa alheia, o vizinho tem o direito de escolher como lida com a questão e a gente não se mete. Mas não é tão claro assim: e se um país legitima algo que é inaceitável aos nossos valores – como a própria pena de morte, genocídios, violência contra mulheres, etc.- devemos da mesma forma aceitar isto como legítimo culturalmente? Se pleiteamos que a Indonésia não execute a pena de morte num brasileiro, não podemos entender pelo mesmo princípio que um muçulmano pleiteie que não zombemos de Maomé?
No caso do atentado ao Charlie Hebdo, não encontrei ninguém defendendo o assassinato das 12 pessoas ou das 4 mortas no dia seguinte, num mercado. Muitos (como o Papa Francisco), no entanto, observaram que não se deve brincar com o que é sagrado para os outros. No limite, este respeito levaria a um policiamento politicamente correto que engessaria a comunicação. Os limites entre ‘eu’ e o ‘outro’ não são bem definidos.
Mas como lidar com a diferença cultural? O fato de vivermos num ambiente ocidental e moderno, no qual nada é sagrado, nos dá o direito de tratar com nossa ironia e deboche algo sagrado à outra cultura?
Quando saiu a notícia do atentado, minha primeira reação foi postar em meu perfil no Facebook uma série de capas do Charlie Hebdo, que debochavam de religiões e políticos. Parecia imperativo se posicionar pela liberdade de imprensa! Mas quando comecei a ver inúmeros amigos ostentando como foto de perfil o “Je suis Charlie”, lembrei-me de quantos deles se mostraram absolutamente intolerantes há apenas dois meses, durante as eleições de 2014. O ódio mútuo e a intolerância para com a opção eleitoral do outro geraram inúmeras ofensas e perdas de amizade. A Revista Veja, notória por seu anti-petismo, chegou a ter sua sede depredada. Não é difícil imaginar que muitos daqueles que responderam com intolerância às manifestações que lhes eram contrárias (chamadas, “por isto”, de irracionais…) tenham ostentado um comovido adesivo pelo Charlie.
Quando pensamos em liberdade de expressão, pensamos de fato na liberdade de nossa expressão, ou na daqueles com cujas posições nos identificamos. Somos mais dispostos a pedir tolerância do que a concedê-la.
E só temos compaixão e empatia pelos nossos. Daí ter sido notável a diferença entre a indignação de nossa presidente ante a execução de um brasileiro e o relativo pouco caso que mostrou pelo atentado na França ou ante os degolamentos públicos do Estado Islâmico. Humano, demasiado humano.
O teste de respeito à liberdade de expressão poderia ser o seguinte: imagine algo que lhe seja sagrado, como sua família, religião, time de futebol, pátria, gênero, etc.; imagine agora algo de que costume rir, por considerar ridículo. Imagine agora alguém tratando algo do primeiro grupo da forma que você trata algo do segundo. Isto certamente lhe seria insuportável e geraria ódio reativo.
Penso que o título de “favorável à liberdade de expressão” não deveria ser dado àquele que se veja cerceado em sua expressão, mas àquele que suportasse a ridicularização daquilo que lhe fosse mais caro. Eu mesmo não me garanto. Da mesma forma, penso que não deveria portar o “Je suis Charlie” quem anseie pela regulação das mídias (eufemismo para censura).

O Ocidente moderno inventou esta forma de dessacralização no uso das palavras, a ironia. Ela implica numa concepção segundo a qual as representações não são as coisas. Isto gera, para o bem e para o mal, a perda da aura e o distanciamento das coisas, a capacidade de fazer humor e o sentimento de exílio e perda de contato, expresso tão intensamente pelo Romantismo.
Num livro clássico do linguista Tzvetan Todorov, “A conquista da América. A questão do outro” (1982), ele trabalha a vitória dos espanhóis sobre os povos pré-colombianos, especificamente no México. Apesar de numericamente inferiores, os espanhóis souberam mentir e manipular as crenças dos nativos. O ocidente desenvolveu esta habilidade ardilosa da palavra e da representação. A vitória dos espanhóis teria se dado pela linguagem, não pela pólvora.
Os chamados fundamentalistas (religiosos ou partidários) têm um apego passional e primitivo pelas palavras: elas lhes são coisas. E eles não reagem a ofensas com palavras, mas com passagens ao ato. E não consideram que cada um é livre para fazer o que quer em sua casa.
Num mundo como o moderno, irônico e com falta de confiança absoluta nas próprias ideias, quando alguém pensa diferente de nós, isto indica que somos diferentes. Mas num mundo de certezas absolutas, quem não pensa como eu não é apenas diferente, é errado. E deve ser corrigido ou aniquilado.
Mas mesmo cada um de nós ocidentais temos cá nossos recantos afetivos primitivos que, quando tocados, são feridos e fazem com que entremos num registro também primitivo e violento.
Por fim, como entender os contingentes de jovens europeus que aderem ao fundamentalismo, recebem treinamento e voltam para seus países para se tornarem homicidas e suicidas? Serão ocidentais cansados de sua ironia e ansiosos por um mundo mais literal?

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