Sobre o consumismo: dependência e incapacidade de estar só

Pedro de Santi

Na esteira da Black Friday e às vésperas da loucura de consumo do natal e das férias, retomo uma obra da psicanalista francesa Catherine Audibert, que me parece importante sobre a subjetividade contemporânea: L´incapacité d´être seul. Essai sur l´amour, La solitude et les addictions.. Paris: Paiyot, 2008. Ela trabalha a relação entre a incapacidade de estar só e diversas formas de dependência, inclusive a do consumo. Trata-se de uma contribuição a mais para refletir sobre o consumo compulsivo, sem pretender esgotá-lo.
Nos últimos anos, tem surgido uma vasta literatura no campo da psicanálise na França sobre as adições. Duas características parecem ser recorrentes nesta produção: ela procura se centrar no mecanismo das adições e não em seus objetos específicos (drogas, jogo, consumo, etc.); e ela é orientada predominantemente pelas relações de objeto como modelo explicativo.
Assim, a ênfase está na concepção de dependência.
A proposta da Audibert, no caso, é a de que se que se tome a capacidade ou incapacidade de estar só como uma nova linha divisória entre o normal e o patológico. O próprio sentimento de ser estaria condicionado à possibilidade de se gozar uma solidão serena, por oposição a uma solidão mortífera.
Como o título já permite inferir, o modelo primário do livro é a transicionalidade de Winnicott. Se o espaço da ilusão não é criado na relação mãe bebê, ele estará entregue ao desamparo do vazio ou do excesso de presença do outro.
A presença do desejo do adulto não propicia o espaço seguro de que a criança precisa para a constituição de uma interioridade confortável, à qual cada pessoa precisa poder recorrer ocasionalmente e com a qual deve poder contar.
Sobre o ambiente que não permite que este espaço se constitua, diz a autora:
“alguns adultos não permitem o bastante à sua criança gozar momentos de solidão, pois eles são por demais presentes, estimulantes, excitantes, angustiantes ou por demais dependentes desta criança que tem por vezes por função inconsciente evitar a solidão de seu (seus) pai” (p. 22).
A ideia é a de que o desejo do adulto é vivido como invasivo e produz uma efração traumatizante.
Audibert alinha-se a vários autores que estudam as adições ao propor que estas podem ser pensadas como estratégias paradoxais de sobrevivência. Elas se colocariam como uma última tentativa de defesa antes da loucura ou mesmo da morte psíquica. O uso de determinadas drogas seria uma forma de buscar aquela solidão serena, um resguardo com relação ao objeto, a construção de um espaço de proteção que não pode ser desfrutado de outra forma.
A adição seria uma tentativa de passar sem o outro, evitar a intersubjetividade vivida como insuportável. A alteridade constrange o sujeito a sair de sua reserva protegida e a embriaguês seria um recurso para fazer calar a angústia e reencontrar a quietude invulnerável
A dependência de um objeto (droga, jogo, etc.) seria a procura desesperada por não depender mais do outro humano, cuja presença é insuportável. Os objetos de investimento passam a funcionar segundo o modelo da perversão: eles são efetivamente desconsiderados em sua alteridade e reduzidos a simples e controláveis objetos de gozo. Esta dependência é então uma resposta (reação) à primeira dependência, não um simples prolongamento dela.
O que torna a estratégia aditiva paradoxal é que, na ânsia por não depender do outro, passa-se a depender de forma primária de um objeto externo, do qual a pessoa se torna escrava. Este é o sentido primitivo do termo ‘adicto’. A relação para com o objeto transita do campo do desejo e do prazer para o da auto-conservação, com a criação do que já se convencionou chamar de neo-necessidade.
Assim, num recurso bastante distinto do neurótico, o adicto recuaria a um estado de pura sensação: a busca por uma sensação de tal qualidade/intensidade que lhe obture a sensibilidade/abertura ao outro. A confusão e o ruído do mundo são afastados num entorpecimento apaziguante.
Lembremo-nos da referência de Freud, em O mal-estar na civilização. A busca por substâncias tóxicas é um dos recursos elencados como forma de distrair-se das misérias da vida, via que age sobre “a vida das sensações”. O encontro com uma adição se transforma num recurso de recusa do jogo do desejo. No caso das adições químicas, há uma ação sobre o corpo real que altera significativamente o funcionamento mental.
Aquilo que é sempre apontado como um dos grandes prejuízos sofridos pelo adicto- o empobrecimento do espectro dos interesses variados da vida e a redução de tudo à busca pela “próxima dose”- parece ser especificamente o que é buscado pela narcose. Ela parecerá organizadora, muito precariamente estruturante.
É como se houvesse uma redução geral da experiência e o mundo ficasse mais simples, com menos “itens” a controlar.
Em todos os autores que tratam da adição observa-se a ambiguidade do termo ‘droga’, ‘pharmakon’, que é ao mesmo remédio e veneno. Audibert diz que o adicto é o “farmacêutico autocrata do psíquico”, contra a “intoxicação” produzida pelo outro:
“Uma substância exterior (álcool) viria agir como contra-substância (anestesiante ou repressora) uma vez que a ideia obsessiva torna-se tóxica para o sujeito por seu excesso? (…) [a adição] visa neutralizar uma intoxicação pela administração de certas substâncias externas” (p. 121).
Uma das chamadas “novas adições” que tem recebido atenção crescente é a compulsão ao consumo. Audibert relaciona esta modalidade de compulsão quer a expulsão (hemorragia) de recursos simbólicos, quer a uma busca por acumulação protetora, equivalente a alternância anorexia-bulimia.
Neste ponto, podemos encontrar um ponto de contato entre as dinâmicas aditivas e modalidades de subjetivação contemporâneas. Em Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007), o sociólogo Zygmunt Bauman trata de forma extremamente afinada com as concepções psicanalíticas, exatamente o ponto que tratamos. Contemporaneamente, todos tenderíamos a tomar o consumo como modelo para todas as relações. Uma vez que aprendemos a lidar com bens de consumo de forma objetiva e pragmática, teríamos transplantado o modelo para as relações humanas.
Isto vem ao encontro, de forma dramática, do que observamos sobre as adicções e sua busca compulsiva e exclusiva por sensações prazerosas, a tentativa de evitar a intersubjetividade, a redução do outro a uma dimensão de simples objeto de uso e gozo.
As adições e compulsões certamente são um importante caminho para a compreensão de como se constitui e estrutura (ou mal se constitui e mal se estrutura) a subjetividade contemporânea.

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