Sobre a criminalização do aborto, de novo

Pedro de Santi

Certas questões delicadas parecem voltar à pauta de discussão sazonalmente.
Há poucas semanas foi retomada a discussão sobre a chamada “Cura gay” e agora é retomada a questão da criminalização do aborto, a PEC 181. Trabalhamos neste espaço as duas questões há quatro anos. Retomo abaixo parte do texto que foi publicado em 13/06/2013: “O estatuto do nascituro e não estatuto de sujeitos do sexo feminino”. Ciclos de 4 anos evocam o ciclo eleitoral, que terá eleições para presidente e governador em 2018. Talvez a pauta esteja articulada às forças que se organizam e tentam capturar o interesse public0.
Trecho do texto de 2013:
“Sob a bandeira da defesa da vida humana, evidencia-se claramente um retrocesso no direito das mulheres.
Para tentar entender o espírito que anima este discurso, vejamos: dois adultos do mesmo sexo não podem, em mútuo consentimento, se casar. Mas uma mulher estuprada e grávida estará automaticamente “casada” com o estuprador, na medida em que deixará de poder interromper a gravidez, terá o nome do estuprador no registro de nascimento de seu filho e, dele, receberá uma pensão.
Que concepção de família de deduz destas posições? Uma concepção que funda a família exclusivamente na reprodução. Não se inclui desejo, afeto, história, compromisso, projetos. E a mulher é então o instrumento desta concepção na redução de sua existência à condição de parideira. Não está em questão seu desejo e, segundo o novo estatuto, sequer seu consentimento. A “compensação” dada através da pensão do estuprador a vincula àquele que lhe impôs a violência. Ao estuprador é reconhecida a condição de sujeito; ele será responsabilizado pelo que fez. À mulher estuprada, não é reconhecida a mesma condição; a ela só cabe portar a vida deste modo concebida.
Um trauma é definido como a ausência ou impossibilidade de reagir a um dado estímulo. Num estupro, muitas vezes o elemento mais traumático não procede do ato sofrido, mas justamente na impunidade do autor ou do constrangimento sofrido pela mulher que se envergonha pelo que sofreu. Imagine-se a situação de uma mulher estuprada que engravide e se veja forçada a ter um filho com o estuprador, compartilhar a paternidade da criança com ele e estar vinculada a ele por uma pensão. Uma situação de terror.
Sabemos que as condições modernas de cidadania, autonomia e liberdade nascidas ao final do Renascimento chegaram muito antes aos homens que às mulheres. Passos importantes no sentido da constituição e garantia dos direitos de sujeitos do sexo feminino foram conquistados apenas nos últimos cento e poucos anos. O caminho para a condição de sujeito livre passa exatamente pela superação de condições naturais. Até pouco tempo atrás, uma mulher só era reconhecida como plena na medida em que realizasse seu “destino natural” de ser mãe. Ao longo do século XX, através do vencimento de muitas barreiras, as mulheres puderam adquirir certa liberdade com relação a esta associação de seu corpo com a natureza. Os métodos contraceptivos e o divórcio foram instrumentos essenciais nesta nova condição subjetiva. Como muito bem indicou Denise Fabretti- num artigo para o Nota Ata ESPM em 12 de junho 2013. “A futura mãe é um mero detalhe”- um instrumento jurídico importante para esta emancipação foi criado ao se admitir que uma mulher estuprada que engravidasse por este ato, pudesse interromper a gravidez (até certo ponto específico do processo gestacional). Estava assim garantido o direito de um sujeito do sexo feminino, que a emancipava da condição de objeto sexual ou mídia reprodutiva. Da mesma forma, ela poderia ter a criança, caso assim o desejasse. Ser mãe passou a ser uma questão de opção e desejo, não condição sem qual a mulher estaria em falta para com sua natureza.
O que se tornou gritante pela ausência no Estatuto do nascituro foi a completa exclusão da outra vida envolvida no processo: a da mulher grávida.
É uma questão polêmica e de definição imprecisa quando nasce uma vida humana, o ponto exato em que ela adquire direitos como os de toda pessoa. Pode ser no momento da formação do embrião, pode se considerar que espermatozoides e óvulos são já estruturas vivas, pode se pensar que seja quando determinada condição neurológica se constitui (em torno das 12 semanas de gestação), ou até quando o parto aconteça. É difícil mesmo encontrar este limiar nos quais se considere que células agregadas não são mais um apêndice do corpo de uma mulher e se configuram como seres humanos com plenos direitos. Daí a dificuldade das discussões sobre em que condições uma gestação pode ser interrompida. Independente disto, a discussão sobre a gestação concerne, no mínimo, a dois seres, não a um só.
Para concluir, quero ainda distinguir dois planos do debate. Num deles, há a discussão intrínseca a cada tema, por exemplo: faz sentido falar em um tratamento para a mudança de orientação sexual? Existem condições sob as quais é legítima a interrupção de uma gravidez? Em outro plano, a discussão é anterior: a posição adotada por alguns em coerência com seu sistema de valores pode ser imposta à totalidade da população sob a forma de lei? Se uma pessoa é contra o casamento entre homossexuais, ela não deve se casar com alguém do mesmo sexo; se ela é totalmente contra o aborto em qualquer circunstância, ela não deve fazer um aborto. Este é um valor essencial que será garantido à pessoa num estado democrático. As pessoas podem também difundir e pregar seus valores umas ante as outras. Daí a pretender impor a todos estes valores, vai uma grande distância. Isto configuraria uma ação fundamentalista, como aquelas que o ocidente costuma associar injustamente a todo o islamismo.
Disfarçar dogmas religiosos sob o discurso científico é uma prática de quase duzentos anos contra a qual já estamos- ou deveríamos estar- vacinados.

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