Quem são os donos do poder? – patrimonialismo e estamento no Brasil.

Carlos Frederico Lucio

Em meio à proliferação de notícias sobre a patética passeata que aconteceu em São Paulo no último sábado, clamando (entre outras coisas) pelo impedimento da presidente democraticamente eleita, duas outras notícias se perderam: a de que houve uma micromanifestação na mesma cidade protestando contra o agravamento da crise hídrica (que revela, como todos sabemos, muito mais um gravíssimo problema de gestão do que propriamente intempérie) e o absurdo de uma fiscal de trânsito no Rio de Janeiro que foi condenada a pagar danos morais a um juiz sob acusação de desacato (quando, na verdade, ela teria sido vítima de abuso de autoridade por parte do juiz).

Este último caso (que, diga-se de passagem, não é raro e está fartamente exemplificado pelos noticiários), ainda pouco repercutido na mídia, remete a um crônico problema da sociedade brasileira que é muito bem analisado por Raymundo Faoro, no clássico “Os donos do Poder”. Herdeiro de uma tradição estamentária manifesta por um forte e constante patrimonialismo, o exercício do poder no Brasil coloca em xeque seu caráter democrático quando se flagram situações como estas em que uma autoridade, colocando-se acima da lei, resolve dar uma “carteirada” em um funcionário considerado em uma posição subalterna. Uma série de equívocos estão presentes aí e, sobre eles, gostaria de propor uma reflexão.

Antes, com fins didáticos, para desenvolvimento do argumento, é preciso esclarecer dois conceitos no campo da Sociologia:

a) Patrimonialismo: característica de um Estado em que não existe uma clara distinção entre o que é público e o que é privado. Assim, numa sociedade patrimonialista (como nos regimes absolutistas, mas não é exclusividade deles), o Estado é apropriado por uma categoria social que o utiliza como instrumento da manutenção de seus interesses. Esta lógica está muito presente na tradição da institucionalização do poder no Brasil;

b) Estamento: diferentemente do conceito de classes sociais (cujo foco principal é a perspectiva econômica) esta característica é típica de sociedades em que a economia não é totalmente dominada pelo mercado (como a feudal, por exemplo). Para Max Weber (clássico do pensamento sociológico que desenvolveu importantes reflexões sobre o fenômeno), estamento passa a significar uma rede personalista (relacionamentos interpessoais), formando uma teia que consolida um tipo específico de poder e que exerce influência (e até mesmo determina) um certo campo de atividade. E este poder é, quase sempre, exercido fora dos limites apropriados do poder hierárquico e impessoal conferido pela estrutura da lei: uma autoridade pública só pode ser exercida nos limites daquilo que a lei estabelece como seu campo de atuação.

Um dos princípios básicos da teoria política contratualista (derivada dos filósofos iluministas do século XVIII) é uma ideia que é razoavelmente simples na sua concepção, mas muito complexa na sua consolidação concreta: para otimizar as relações entre as pessoas, minimizar conflitos e tornar a vida social possível, os homens estabeleceram entre si um pacto tácito de transferência de parte de sua liberdade para um poder fora deles mesmos a fim de construir as regras de organização da vida coletiva, tornando-a mais viável e eficaz.

Isso minimizaria custos de várias ordens. Ao longo dos séculos sucessivos, os pensadores no campo da política vão divergir sobre como isso deveria ser construído na prática (níveis distintos de liberdades, de organização social, de participação política etc.), mas o princípio de transferência desta liberdade, fortalecendo uma instância (o Estado) que deveria governa-los é quase uma constante. Assim pensado e constituído, o construção do Estado (pelo menos na sua vertente moderna) consolidaria ainda mais a distinção entre o que é a esfera privada e o que é a esfera pública. E mais: com uma clara predominância desta última sobre a primeira quando se trata de atender a interesses coletivos nos casos em que eles conflitam com os particulares.

Herdeira de uma tradição bastante autoritária que se consolidou ao longo do Século XX, a sociedade e a democracia brasileiras ainda penam muito para conseguir se consolidar plenamente no campo da modernidade. Neste cenário, autoridades públicas constituíram-se sob o manto do patrimonialismo que foi se transformando, segundo a análise de Raymundo Faoro, de um estamento aristocrático para um estamento burocrático que tem as autoridades públicas (em particular, magistrados e “senhores” da lei) concebidas como seres quase inatingíveis, estabelecendo-as como personas a quem a lei praticamente não atinge: é assim que muitas agem como querem, fazem o que querem e não podem ser questionadas. Quando o são, usam sua suposta autoridade hierárquica para se sobressair e, muitas vezes, massacrar seus opositores. Cria-se um valor de que a lei existe para aqueles que não tem poder de passar por cima delas, valor que acaba imperando e construindo dois dos nossos traços mais arcaicos: o personalismo e o autoritarismo. Soma-se a isso, um outro lado do caráter personalista da autoridade que acaba sendo exercida muito além dos limites estabelecidos pelas leis que, em tese, deveriam reger o seu exercício. É como se houvesse uma transposição da ideia de poder: ele não está no cargo (e, portanto, só pode ser exercido no seu espectro de atuação) mas está na “pessoa” (e, por isso, pode ser exercido em qualquer lugar).

Uma tradução simples desta lógica de poder pessoal é o famoso “Você sabe com quem está falando?”, brilhantemente analisado por Roberto DaMatta em “Carnavais Malandros e Heróis”. E que foi exatamente a posição do magistrado no caso em questão.

A cena do caso da fiscal de trânsito é um conjunto de nonsense, neste sentido. Um juiz que trafega com o veículo com documentação irregular, sem placa identificativa e sem carteira de motorista, está flagrantemente descumprindo a lei. Nada nem ninguém o autoriza a desobedecer a lei. Ao ser flagrado cometendo estes atos, deve ser punido com o rigor em que a lei se aplica às pessoas que a infringem. Do outro lado, uma autoridade de trânsito que está cumprindo sua função. Naquele contexto, diga-se de passagem, ela é uma autoridade maior que o juiz, porque pela lei, é a responsável total pela fiscalização de irregularidades e o juiz (naquele momento, um cidadão como outro qualquer), como infrator, deveria se submeter à mesma lei que ele é responsável por zelar e fazer aplicar. E o nonsense se completa porque, em tese, este juiz, mais do que ninguém, deveria zelar e pelo cumprimento da lei. E não atropelá-la com um rolo compressor como ocorreu.

Não custa lembrar: nem juiz, nem presidente, nem ninguém está acima da lei! Se queremos falar de democracia, precisamos estar atentos para este tipo de abuso. E o caso do juiz só é emblemático de uma lógica que é amplamente difundida na sociedade brasileira: essa história de que a lei é boa, mas só serve para os outros, porque no meu caso, é diferente; sempre dou um “jeitinho”. Afinal, cada um com suas justificativas, “eu sou especial”.
Quando vejo as remissões à Ditadura (como no caso da passeata de sábado, 01/11), sempre penso: não temos visão autoritária porque ainda respiramos ares de ditadura, mas construímos ditaduras porque temos uma forte vertente autoritária na sociedade e na cultura brasileiras. Nesse sentido, é muito expressivo o fato de que a manifestação contra a crise hídrica tenha reunido parcas 200 pessoas enquanto a outra, pelo “impeachment”, teria reunido até 2.500 (no seu ápice). Protestar por um direito parece ser menos importante do que protestar contra um poder estabelecido (principalmente se meu protesto ilusoriamente me conduz à ideia de ocupar – ainda que simbolicamente – aquele poder).

Eu me pergunto o quanto este diagnóstico é crônico e se um dia irá mudar! Tenho esperanças que sim. Mas, ando meio desanimado.

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