Que horas ela volta? O desejo que perturba e revitaliza

Pedro de Santi
Aviso: há muitos spoilers. Apelo: se não assistiu, assista; é um filme necessário.

O nome de filme de Anna Muilaert já evoca a expectativa ante uma falta, um desejo. Como na belíssima canção “Você, você”, de Chico Buarque e Guinga (https://www.youtube.com/watch?v=hKbIit7RKyc), na qual o enunciado “Que horas você volta?” é repetido num deslizamento de alguém fragilizado pelo abandono: entre uma criança que espera pela mãe e um homem que espera por sua mulher; a falta é sofrida e atribuída a um terceiro. E o enigma se desdobra: onde está o outro? Ele volta? Quando? O que ele deseja? Por que não a mim?

No filme, rapidamente percebemos que a pergunta remete a uma menina cuja mãe se mudou para longe para trabalhar como doméstica. Depois de anos de longas ausências e visitas esporádicas nas quais trazia presentes e sinais de prosperidade, quando o filme se inicia, faz dez anos que mãe e filha não se veem. A situação, assim, é cruelmente verossímil: milhares de imigrantes nordestinos há décadas tentam a sorte no sudeste deixando suas famílias para trás, enviando dinheiro quando podem e com a esperança de um dia voltar ou trazer os demais.

A situação inicial do filme com Regina Casé interpretando a empregada doméstica submissa de uma casa de classe média alta chega a preocupar: será que o sotaque carregado da comediante prenuncia uma daqueles filmes oportunistas e descartáveis com elenco global?

Mas, então, a filha que passara uma década aguardando pela volta da mãe para de esperar e age: anuncia que está vindo para São Paulo para prestar vestibular e quer se hospedar com ela.

O reencontro com a mãe e sua realidade não corresponde à expectativa do reencontro com o objeto de amor faltante e há uma grande frustração. E a chegada da filha ao lar, onde a mãe trabalha e mora, faz dela própria um poderoso objeto de desejo.

A família paulistana também é tristemente verossímil, um casal apático, entorpecido pela rotina e acomodação e um filho adolescente, que nunca passou por dificuldades básicas na vida e encontra um afeto materno mais consistente na empregada (babá?) do que na própria mãe. O filho vive também um padrão de vida que ele não viu sequer ser construído: o dinheiro que sustenta a família foi herdado pelo pai; que é dono do que não construiu e se sente no comando da casa por isto. Mas a dona da casa é a mãe, que controla os membros da família e sua rotina com eficiência mortífera

Os efeitos da chegada da filha da empregada são perturbadores. O outro que chega como estranho e provocativo, novo e perigoso. Em conversas sobre o filme, mais de uma pessoa evocou o filme “Teorema” (1968), de Pier Paolo Pasolini; também imperdível. A estabilidade é quebrada e o desejo desperta atravessando todas as barreiras construídas e solidificadas a ponto de parecerem naturais. Toda estrutura de divisão de classes se revela, toda a estrutura da constelação familiar se evidencia e desfaz. A personagem do pai da família é especialmente patética, neste sentido.

A nova personagem nada tem a ver com a ordem que está ali. Como o menino, ela não viu como foi ganho o dinheiro que pagou seu sustento. Neste caso, com o trabalho da mãe. Há até certa crueldade e ingratidão na pressa com que nega a condição da mãe e se aproxima do universo dos patrões.

Com pouco menos de vinte anos, ela não se reconhece como filha da empregada, mas como filha de um Brasil estável e inclusivo (o filme foi feito antes de 2015, afinal). Ela conheceu apenas três presidentes, todos eleitos democraticamente, só sabe da existência de uma moeda, não conhece a inflação ou a ditadura. E acima de tudo, se ela não teve acesso às escolas de primeira linha que o filho do casal frequentou, ela cresceu tendo a dedicação de um professor interessado e acesso à internet. Como todos em sua geração, ela dispõe de toda a informação que existe na ponta dos dedos. O acesso à informação não é mais um divisor de classes sociais.

Esta revolução social e tecnológica só se compara à invenção do livro e à da imprensa. Ela encarna o lado bom de tudo que há de ambíguo no mundo contemporâneo: o acesso e a democratização do conhecimento.

A situação de submissão social vivida pela mãe e as humilhações impostas pela dona da casa são inaceitáveis; a menina passa a circular através das barreiras sociais com desenvoltura, tendo seu acesso aberto pelo desejo dos dois homens, insurgidos contra a dona da casa. Esta ainda tenta retomar o controle com um clássico artifício histérico: sofre um acidente de carro, se fere e cobra a atenção de todos. Mas é tarde: ela já perdeu o lugar.

Da condição de humilhação, a filha dá a volta por cima.

O filho mimado fracassa, mas não tem sua falha apontada, como forma de aprendizado. Pelo contrário, ele é premiado com o tão cobiçado intercâmbio na Austrália. O que é que os pais estão ensinando a ele, afinal?

Com a saída da filha e do menino, o único motivo que mantinha a empregada afetivamente ligada à casa se desfaz. No menino, ela vivia deslocadamente sua maternidade. Aquilo que ela não pôde viver com sua própria filha.

Nesta grande reviravolta, ela sai da condição de submissão (a cena dela na piscina é antológica e esteticamente o ponto alto do filme) e também se encontra na possibilidade de reparar a falta que fez ao se disponibilizar agora para cuidar de outro menino. Com isto, ela poderá evitar que sua tragédia se repita com a filha.

De comédia de costumes global, passamos por “Teorema” e chegamos a outro grande filme brasileiro: “Que horas ela volta?” está para Regina Casé como “Central do Brasil” (1998) está para Fernanda Montenegro. O desfecho comovente leva da alienação e manutenção do jogo social à emancipação social e subjetiva que as tornam sujeitos de suas histórias. Sujeitos desejantes: sofridos pelas insatisfações e esperas, mas tão mais interessantes que os apáticos (privados de paixão).

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