Quando “Negro” significa orgulho de uma tomada de Consciência.

Carlos Frederico Lucio

O final da ditadura militar no Brasil, em meados da década de 1980, marca a eclosão de movimentos populares das chamadas bases sociais, ou minorias (não do ponto de vista numérico, mas politicamente participativo – ou seja, excluídos dos tradicionais mecanismos decisórios), como proletários urbanos e rurais, populações indígenas, sem terra, mulheres etc. No bojo deste debate, um movimento de conotação étnico-política começa a se consolidar – principalmente com um corpo jurídico específico: o chamado “movimento negro”. 

Muito embora as lutas antirracistas e por garantia de direitos não fossem novas no Brasil, é o ano de 1988 que serve de palco para três eventos de não tão grande relevância histórica, mas que vai reverberar internamente na “questão negra” e se refletir diretamente na militância política desses grupos. 

O primeiro deles ocorreu em maio daquele ano, quando esses movimentos provocaram um enfrentamento simbólico com o Estado brasileiro recusando-se a participar das comemorações oficiais relativas aos 100 anos da Abolição da Escravidão e organizando seus próprios festejos e ações alusivas à data. A alegação era de que a Abolição, de fato, não havia acontecido dada a condição sub humana de muitas comunidades negras no Brasil (vítimas preferenciais da violência, da miséria e da exclusão social – como resultado de uma ausência de política de inclusão pós libertação) e a proliferação do racismo velado e forte em nosso país.  

O segundo ocorreu em outubro, quando da promulgação da Nova Constituição (também apelidada popularmente de “Constituição Cidadã”) e que trazia os artigos e parágrafos relativos às comunidades quilombolas e outros dispositivos antirracistas. Nesse sentido, a Constituição foi um marco importantíssimo. 

E, por último, decorrente daquela  resistência às comemorações do centenário da Abolição da Escravidão (ocorrida em maio), o movimento negro acentua as comemorações do dia 20 de novembro, data que já era dedicada a um dos pouquíssimos heróis negros reconhecidos pela historiografia brasileira (Zumbi dos Palmares) – em que pese ser esta uma figura bastante polêmica na mesma historiografia, pois sua alçada à categoria de herói é questionada por muitos historiadores –, como o “Dia da Consciência Negra”. 

De acordo com o historiador Aldemir Fabiani, corroborando a ideia de uma inclusão da pauta marxista no movimento negro, é possível afirmar que esta preferência pela saga de Palmares tenha se dado por alguns motivos: a maioria das lideranças do movimento negro organizado e os intelectuais ligados à causa do negro já haviam escolhido Zumbi como herói, em sentido de oposição à data da Abolição; o conceito de quilombo foi apropriado por parte da esquerda brasileira, contrária ao regime militar, como exemplo de resistência, irreverência e apelo à liberdade; a intelectualidade marxista, ou simpática ao marxismo, também havia definido o quilombo como exemplo da luta de classe, no regime escravista. Se Zumbi foi historicamente isso ou não, importa menos do que o fato de que ele tenha sido colocado neste lugar na historiografia. Lembremos que o mesmo ocorreu com Tiradentes, outro herói cuja “heroicidade” é profundamente questionada por historiadores. (Mas, certamente por ser branco, o senso comum não se questiona muito sobre isso.)

É assim que estes três eventos contribuíram para colocar a questão “negra” na pauta das discussões políticas, sociais e culturais no Brasil do final dos anos 1980, um fato de importância histórica, já que, no Brasil, o problema de assumir a segregação racial sempre foi um desafio dos mais relevantes no campo social. É preciso lembrar também que, paralelamente a esse movimento, estava ocorrendo um outro bem forte, o das nações indígenas brasileiras (mas isso é outro assunto). Em suma, todas estas questões firmam a década de 1980 como um importante marco para a consolidação do tema étnico-racial (índios e negros) como um dos protagonistas dos movimentos sociais ressurgentes.

Não obstante, ainda serão necessários alguns anos para que a questão negra, de fato, entrasse na pauta oficial do governo Brasileiro em suas várias esferas. Embora tenha havido alguma movimentação aqui e acolá, é importante que se registre que o governo Lula foi, sem sombra de dúvidas, um marco importante a esse respeito devido a várias medidas institucionais por ele criadas. Ao contrário do que o senso comum mal informado tenderia a pensar, não estou falando da questão das cotas raciais para o ensino superior. (Pauta, aliás, longe de ter sido proposta pelo governo, mas foi encapada por ele a partir do que algumas universidades estavam fazendo e também pelas diretrizes da Conferência de Durban. Mas isso é outro assunto.)

Voltando ao ponto, dessas medidas, talvez o exemplo mais significativo tenha sido a primeira lei sancionada por aquele governo, com um peso duplamente simbólico (pela data escolhida e pelo fato em si): em 09 de janeiro de 2003 (“Dia do Fico”, considerado por muitos historiadores como a data mais importante – até mesmo que mais que o 07 de setembro – que marca a ruptura dos laços entre colônia e metrópole no Brasil), o presidente assina o Decreto Lei 10.639 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir, no currículo oficial, da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, além de instituir oficialmente o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. O primeiro ponto representou uma correção histórica monumental: apesar de ter a contribuição das culturas negras vindas da África amplamente reconhecidas por pensadores como Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, nenhum livro de história do Brasil utilizado na rede pública trazia, a não ser por breves informações caricaturais, o real peso destas contribuições. Tudo se passava como se fôssemos, nós brasileiros, apenas europeus (embora nossos fenótipos neguem acintosamente as omissões dos manuais de história). O segundo item do decreto, embora controverso (pela própria polêmica em torno da figura de Zumbi), também é de uma expressividade histórica fora do comum: trata-se do reconhecimento oficial do primeiro herói negro ao qual é dedicado um dia para culto à sua memória. Outra medida, ainda no mesmo ano (2003), em maio do mesmo ano foi a criação de uma pasta dedicada a assuntos raciais (a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, SEPPIR) cujas funções, entre outras, seria elaborar políticas de desenvolvimento sustentável para as comunidades tradicionais de afrodescendentes no Brasil. 

Toda esta movimentação ocorre pouco tempo depois que o Brasil assina o tratado da Conferência Mundial Contra o Racismo, ocorrida na cidade de Durban em 2001 (mas que foi deixado de lado pela gestão federal anterior) que o obrigaria a desenvolver políticas de combate ao racismo e de ações afirmativas. Isso vai levar a um dos mais importantes fatos nesse campo que é justamente o debate sobre cotas. Quero deixar registrado apenas – até porque foge do tema aqui proposto – que, independentemente da posição que se tenha (contra ou a favor), este debate foi o fato que mais contribuiu para inserir a questão do racismo e do preconceito racial na pauta de discussão da nação. Fato inédito! 

É assim que, pressionada pelos movimentos sociais e aproveitando este momento de visibilidade e institucionalização (via Constituição e leis), com um amplo debate debate sobre Racismo, Preconceito, Discriminação pelo viés étnico racial que o movimento negro entra na pauta brasileira. Um outro aspecto relevante (mas não discutido aqui) é a questão quilombola e a gigantesca participação das culturas negras na nossa formação. 

Muito ainda falta por ser feito. Estamos ainda a anos-luz de qualquer perspectiva de acabar com o racismo promovendo uma inclusão étnico-racial. Mas ter um dia para nos lembrar que isso é, sim, um problema no Brasil, é muito importante e necessário. Até para que não seja mais necessário um dia como este. Por enquanto, ele é e muito! Os fatos recentes de racismo no país são uma prova evidente disso.

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