Os Paradoxos do conceito de raça.

Recentemente, um episódio envolvendo uma professora da Universidade Estadual do Pará (UEPA) – curiosamente uma antropóloga especializada em religiões afrobrasileiras – e um funcionário da segurança, recolocaram na mídia o problema da questão racial no Brasil. Este episódio e a discussão sobre cotas raciais nas universidades reacenderam um debate que expõe algo muito curioso sobre o tema: apesar de todos os avanços conquistados pelas Ciências Sociais no que tange a temática racial, muito pouco efetivamente se sente da incorporação destas conquistas pelo senso comum, ou seja, por aqueles que não fazem parte do universo da “academia”.
Tema bastante discutido na primeira metade do século XX, os problemas racial e da miscigenação parecem ainda muito mal resolvidos no campo social brasileiro. Além dos exemplos de discriminação que se multiplicam pela sociedade (a despeito das conquistas no campo jurídico), percebe-se com muita força a presença, na opinião pública em geral, ainda que de forma inconsciente, alguns dos mais fortes pressupostos novecentistas que alimentaram (e continuam alimentando) práticas discriminatórias. Discutir o tema em poucas linhas é um desafio e tanto. Por isso, optei por trazer algumas breves considerações sobre o conceito de raça (tanto no campo da biologia quanto no campo das ciências sociais) e suas implicações para, pelo menos, proporcionar um esclarecimento superficial sobre o conceito que fundamenta este debate.
Herdeiros do embate entre uma tradição positivista do século XIX (que no campo dos estudos da relação entre raça e cultura incorporaram as teses eugenistas e deterministas do evolucionismo cultural – em especial sob os efeitos do pensamento de Joseph Arthur de Gobineau) e aquela abordagem culturalista de Franz Boas e seus descendentes intelectuais, os pensadores brasileiros dividiram-se na análise acerca dos efeitos da mestiçagem sobre a formação da nossa cultura. Nas ciências sociais, este debate começou a ganhar novos rumos somente a partir da publicação de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freire, que pode ser considerado um marco na derrocada das teses do determinismo biológico-racial. Mas isso, como se sabe, de longe representou um termo à discussão (e, muito menos uma valorização das contribuições multirraciais – sobretudo aquelas de origem africana – para a formação da nossa constituição física). Sim, porque no plano simbólico das contribuições culturais, parece ser mais aceitável o papel desempenhado por estas etnias. Mas no plano concreto, da configuração da multiplicidade de tipos físicos, isso ainda parece ser um problema para boa parte dos brasileiros.
Um grande problema, para o senso comum, é justamente a dificuldade que muita gente tem de entender que o conceito de raça (em particular quando se fala da espécie humana) não possui a menor consistência científica. Vejamos as bases desta constatação.
Embora a palavra e a ideia de “raça” remontem ao século XVI, o seu estatuto científico foi dado pelo sueco Carl von Lineu quando da publicação, em 1776, do marco na taxonomia biológica, o seu “Systema Naturae, per Regna Tria Naturae secundum Calsses, Ordines, Genera, Species” (publicado em francês com o título “Sistême de la Nature – de Charles de Linné). Ao lançar as bases para o moderno sistema taxonômico ainda hoje utilizado pela biologia, Lineu propõe a ideia de que a espécie humana poderia ser dividida em subespécies, com base no fato de que existiriam diferenças genotípicas substantivas que levariam às diferenças fenotípicas observadas dentro da espécie humana. Tal seria a base para se construir, na biologia, o conceito de raça: esta seria uma subdivisão de uma espécie em subespécies. A própria etimologia da palavra remontaria ao termo latino “ratio” (de “razão”, termo matemático para “divisão”).
Apesar de equivocado, pois a ciência do século XX demonstrou que o geneticamente não há variações substantivas na espécie humana que justifiquem a sua subdivisão em subespécies, a proposição de Lineu não chegou a ser um problema do ponto de vista das relações entre os povos. O grande “mal” começa com Joseph Arthur de Gobineau quando publica o seu “Essai sur l´innégalité des races humaines” (“Ensaio sobre a desiguldade das raças humanas”). Como o próprio título indica, Gobineau (conhecido como “pai do racismo científico”) afirma a tese de que haveria uma relação de hierarquia (desigualdade e não apenas diferença) entre as raças. E mais: uma relação de determinação entre raça e cultura, o que implica, em última instância, que um povo de raça superior só poderia produzir uma cultura de nível superior (e vice-versa) ou, mais extremo, um povo de raça inferior jamais poderia produzir uma cultura superior.
Esta ideia acaba ganhando força na Europa positivista e colonialista do século XIX e invade o século XX. Entretanto, o fato de que tanto a biologia quanto a antropologia tenham demonstrado à exaustão que essas ideias não encontram o menor lastro com a realidade, elas se consolidaram de tal maneira no imaginário das pessoas o que acabou levando a  sua reificação, transformando-a num fato sociológico da mais alta relevância. Talvez raça seja um dos melhores exemplos, nas relações entre grupos sociais, de uma crença sem fundamento empírico que assume concretude e constroi um campo de forças antagônicas, muitas vezes violento, na medida em que é somente a partir destas ideias que raça passa a ser utilizada como critério de classificação entre povos. Os povos eram classificados por origem, religião, cultura, língua etc., mas nunca, antes do século XVIII o critério biológico apareceu como fator de classificação.
Embora a ciência afirme que não existem raças, as pessoas seguem sendo discriminadas e sofrendo violência por conta da “raça” (aquela em que se acredita), numa concretização violenta de relações de alteridade. Como afirma Castoriadis, “O Racismo participa de alguma coisa muito mais universal do que aceitamos admitir habitualmente. O racismo é uma transformação ou um descendente especialmente violento e exacerbado (arrisco-me até mesmo a dizer: uma especificação monstruosa) de uma característica empiricamente quase universal das sociedades humanas. Trata-se, em primeiro lugar, da aparente incapacidade de se constituir como um si mesmo sem excluir o outro; em seguida, da aparente incapacidade de excluir o outro sem desvalorizá-lo, chegando, finalmente a odiá-lo.”
Uma fita de Moebius do ódio sem fundamento que fundamenta uma crença que leva ao ódio.

Prof. Carlos Frederico Lucio

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