O “Homo Ludens”. Na rede desde o berço II

Pedro de Santi

Dentro de uma pesquisa mais ampla sobre as consequências do acesso precoce à internet e ao mundo virtual por crianças, apresento uma obra clássica sobre o sentido do brincar. Algo que pode ser derivado para nosso uso dos games, mídias sociais e demais atividades que nos absorvem cada vez mais e nos fazem parecer, aos olhos de quem nos veja imersos em alienação.

Datado de 1938, o livro Homo ludens, de Johan Huizinga é um clássico de fôlego. Ainda que tão distante de nosso ambiente e anterior às questões do uso de tecnologia, ele consegue identificar a atividade lúdica humana de forma abrangente, e que nos ajuda muito a compreender a sedução dos mundo virtual. O autor está interessado especificamente nas dimensões culturais da atividade lúdica, como ela se apresenta nas artes, no esporte e, mesmo nos rituais religiosos. Ele propõe uma alternativa às definições do Homem como Homo Sapiens ou Homo Faber. A capacidade lúdica seria a mais fundamental de nossas características. O termo ‘ilusão’ remete ao latim ‘inludere’, no lúdico, nossa capacidade de transcendermos o imediato, criarmos sentidos e narrativas para nossas experiências e habitarmos outros espaços.

Os termos play, em inglês e spiel, em alemão são bastante abrangentes, englobando os termos em português ‘brincar’, ‘jogar’ ou ‘atuar’. Para tentar manter a uniformidade do termo usado pelo autor, privilegiarei a tradução ‘brincar’.

Huizinga indica que o brincar é anterior à própria cultura e não limitado aos humanos, o que evidenciaria sua condição de fundamento de experiências e, mesmo da própria cultura. O autor se propõe a estuda-lo em si, sem que considerar que o brincar esteja a serviço ou a caminho de outra atividade; como descarregar tensão, imitar ou treinar.

Huizinga evoca a imagem de um torcedor num jogo de futebol como paradigma da experiência do brincar: “E nesta intensidade, nesta absorção, neste poder de enlouquecimento, reside a própria essência, a qualidade primordial do brincar”. Não é difícil trazermos ente modelo para a nossa imersão no mundo virtual.

O brincar se dá quando um fluxo da mente se distancia do determinismo da experiência corrente. Ele se destaca da experiência imediata, é encantador e cativante, criando uma experiência de ritmo e harmonia.

Huizinga define o brincar com três características:

1 O brincar é supérfluo. Ele só é urgente dentro de seu campo de regras e mundo que cria. Ele pode ser interrompido a qualquer momento e não é uma imposição física ou moral. Ele é realizado num “tempo livre”.

2 Ele não é a vida ordinária ou “real”. Por derivação, a vida não é um jogo. Ele pode se dar como uma festa ou um ritual, sempre se destacando do plano do cotidiano.

3 Ele é circunscrito a um campo, um playground. Há regras, locais e tempo e ele configura um curso e significado interno.

Este último item da definição é recorrente entre autores que estudam jogos e já nos ajuda a reverter aquele temor de que o mergulho no mundo virtual implique na fuga da realidade concreta em busca de uma liberdade descompromissada. Num certo sentido, inverte-se aqui a perspectiva. O mundo do brincar pode ser pensado exatamente como a busca por uma experiência controlada, num ambiente onda há ordem, sentido e a possibilidade de interrupção. Isto, por oposição ao mundo, tomado agora não como algo real e estabelecido, mas como extenso, difícil de controlar ou compreender.  O brincar não é livre ou o busca por liberdade; ele pode ser justamente a busca por um microcosmo organizado ante a realidade caótica, tediosa ou traumática.

Sem me aprofundar aqui na dimensão cultural, que interessa muito a Huizinga, destaco apenas uma dimensão de relação com o outro implicada no brincar. Ao brincarmos juntos com outros, desenha-se uma relação ambivalente: de um lado, compartilhamos o playground, com suas definições e regras; de outro, muitas vezes nos colocamos como antagonistas dentro do jogo, numa guerra com regras. Somos capazes de compartilhar comunidades de significações e regras, como forma de amenizar e intermediar as relações com os outro. Mas a paixão por ganhar de algum dos jogadores estraga o jogo; suspende-se o distanciamento e as regras do jogo podem ser quebradas.

Derivo por minha conta a ideia de que formas de intolerância e fanatismo se deem justamente pelo esquecimento da dimensão simbólica e de “jogo social”. Suspende-se a relação de intermediação e há uma imposição de força. Ante a complexidade de um ambiente de conflitos e diferenças perturbadoras, pode um alívio acreditar que se repousa sobre solo real.

A novilíngua de George Orwell, em “1984”, que buscava reduzir as palavras circulantes de forma a que só houvesse uma para coisa, numa linguagem unívoca e sem metáforas; a literalidade com que o discurso politicamente correto vigia e censura a linguagem. Estes são alguns dos esforços autoritários por erradicar o lúdico e o polissêmico. Não é à toa que a sexualidade e a arte sejam objetos privilegiados da repressão.

Voltando a Huizinga, ele conclui seu livro num tom de desencantamento, ao analisar o quanto, desde a revolução industrial, o mundo tornou-se menos propenso ao lúdico: “work and production became the ideal, and then the idol, of the age”. A mentalidade produtiva e mesmo o discurso científico seriam sintomas de um mundo que recusa e desvaloriza a dimensão lúdica em favor de um foco instrumental. Trata-se de um mundo que se lava por demais a sério, esquecendo seu fundamento simbólico e lúdico.

Concluo este percurso pela obra de Huizinga com uma citação de Freud, em “O escritor e a fantasia” (1908);

 “O adulto pode se recordar da grande seriedade com que brincava na infância, e, equiparando suas ocupações pretensamente sérias àquelas brincadeiras infantis, livra-se do pesado fardo imposto pela vida e alcança o elevado ganho de prazer proporcionado pelo humor” (FREUD, 1908, p. 328).

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