O dito pelo não dito

Por Luciano Segura, professor do Intergraus Vestibulares

 

É curiosa a capacidade humana de ouvir e reinterpretar palavras expressões a ponto de transformá-las em frases absurdas e engraçadas

O processo pelo qual passam algumas expressões populares – modificadas muitas vezes por um ouvinte desatento – é um dos mais curiosos fenômenos da língua. Ele mostra como as mensagens dependem tanto de quem as emite quanto de quem as recebe. Um caso interessante é o que deu origem à famosa expressão “cuspido e escarrado”.

Há quem diga que veio de “esculpido e encarnado” e – por causa do “telefone-sem-fio” da linguagem do dia-a-dia – virou “cuspido e escarrado”. Nem faz, aliás, muito sentido dizer que um filho teria sido “cuspido e escarrado à imagem do pai”, não é? Esculpidas e encarnadas, por outro lado, seriam as imagens de santos nas igrejas. Esculpidas e perfeitas – quase como re-encarnadas.

Outra corrente defende que a expressão teve origem em “esculpido em carrara”. “Carrara” pode fazer referência à perfeição das esculturas de Michelangelo, pois é o nome de uma localidade na Toscana, Itália, cujo mármore de excelente qualidade, que ali se encontra em abundância, teria sido bastante usado pelo célebre escultor da Pietà.

Do mesmo modo que as teorias sobre a semelhança são aceitáveis, ainda é possível que “cuspido e escarrado” tenha outras explicações. O dicionário Houaiss chama a atenção para o fato de que existem expressões próximas àquela em Francês tout craché (“todo escarrado”); em Italiano nato e sputato (“nascido e escarrado”); e em Inglês spit and image of ou the spitting image of (“o cuspe e a imagem de” ou “a imagem cuspida de”).

Sobre isso, Alain Rey e Sophie Chantreau afirmam, no Dictionnaire des Expressions et Locutions (“Dicionário das Expressões e Locuções”), haver clara relação entre esses termos e sua ocorrência em vários idiomas. Para os autores, o ato de cuspir, em muitos povos, significa a criação, a geração. Por extensão, também se ligaria à fala: “nesse plano, tout craché corresponderia a ‘que se pode exprimir ou descrever de maneira idêntica’ ”.

Trocando de biquíni

Não é impossível que esse processo de substituição de palavras por semelhança sonora tenha ocorrido. Todos os dias nos deparamos com novos exemplos. Quem não se lembra da canção Noite do Prazer, de Cláudio Zoli? Na letra original, lia-se “Na madrugada, a vitrola / rolando um blues, / Tocando B. B. King sem parar”. Mas muita gente, na pista de dança ou do meio da platéia, no show, cantava (e ainda canta): “Na madrugada a vitrola rolando um blues / ‘Trocando de biquíni’ sem parar”.

E Lágrimas de Chuva, do grupo Kid Abelha? De “Eu dou plantão dos meus problemas / Que eu quero esquecer”, tornou-se “Eu ‘tô plantando’ meus problemas / Que eu quero esquecer”. Em Homem Primata, dos Titãs, o verso “Homem primata / capitalismo selvagem” ou “Homem primata / ‘capitaliza’ o selvagem”. “Só love, só love”, de Claudinho e Buchecha, se transformou, com um pouco de imaginação, em “Salário, salário”. Os versos “Brasil, meu Brasil brasileiro / Meu mulato inzoneiro / Vou cantar-te nos meus versos” de Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, também sofreram modificação ao tornarem-se “Brasil, meu Brasil brasileiro / Meu mulato ‘estrangeiro’ / Vou cantar-te nos meus versos” – “inzoneiro” é aquele “que ou quem é sonso, manhoso; enredador”, segundo o Houaiss.

E dói o ouvido…

Nem sempre, porém, essas releituras são incorretas ou distantes do original por acidente ou erro do ouvinte. Adoniran Barbosa – redescoberto e revisitado ultimamente – brincava de maneira excepcional com o que as pessoas falavam no dia-a-dia.

Tiro ao Álvaro

De tanto levar “frechada” do teu olhar

Meu peito até parece sabe o quê?

“Tauba” de tiro ao “álvaro”

Não tem mais onde furar

Teu olhar mata mais do que

Bala de carabina

Que veneno estricnina

Que peixeira de baiano

Teu olhar mata mais que

Atropelamento de “automóver”

Mata mais que bala de revólver

Essa é nossa curiosa arte de ouvir (mal). Ouvimos o que se aproxima de uma palavra que faça sentido, quando faz… Quando não faz, vai assim mesmo. Não é verdade? Vejamos o exemplo da participante do Big Brother Brasil 4, Solange.

Em 1985, We Are the World, música escrita por Michael Jackson e Lionel Richie, comoveu o mundo para arrecadar fundos na luta contra a fome na África. We Are the World virou “Iarnuô” na boca de Solange; aliás, sua versão não foi a primeira. Houve, por exemplo, uma paródia produzida pelo programa norte-americano Saturday Night Live, chamada I’m Also the World, cantada por Prince, então concorrente de Michael pelo título de rei do pop. Entre tantas paródias da canção, ninguém esquece a brasileira: “E arde o olho / e dói o ouvido…”

Ainda no rol das músicas, também é vítima o nosso Hino Nacional. Quem ainda não ouviu as mais loucas frases surgidas durante sua execução? “ ’Elvira’ do Ipiranga as margens ‘flácidas’ “ e “ Verás que um ‘filisteu’ não foge à luta”. Já prestaram atenção no que muitos jogadores da seleção cantam? “’Virundum’ Ipiranga margens plácidas” ou “’Ouviro’ do Ipiranga”, “do que a terra ‘margarida’ / conseguimos conquistar com ‘braços fortes’”, etc. Todo dia, milhares de brasileiros colaboram para incrementar o “cuspido e escarrado” do que ouvem (ou pensam que ouvem), e transmitem aos outros.

Dor no figo

Nem sempre temos documentos, como é o caso das músicas, para comprovar a origem de alguma expressão. Existem casos em que a mensagem original é modificada de tal forma que o significado da expressão acaba sendo alterado. Por exemplo, “quem não tem cão caça como gato” – ou seja, sozinho, assim como caçam os gatos – virou “quem não tem cão caça com gato”, que significa “quando não se tem algo melhor, usa-se o que se tem”.

Houve, evidentemente, mudança completa quanto ao sentido que se queria transmitir. Assim como “cor de burro quando foge”, “batatinha quando nasce / se esparrama pelo chão” e “quem tem boca vai a Roma” podem não ter vindo de “corro de burro quando foge”, “batatinha quando nasce / espalha a rama pelo chão” e “quem tem boca vaia Roma”. Esta última expressão, por sinal, traz certa polêmica, porque há registros mais aintigos identificando “quem tem boca vai a Roma” como original. Há, curiosamente, explicações que buscam justificar as duas. Isso não ocorre apenas com expressões. As palavras também sofrem tal processo. Difícil é justificá-lo.

Fígado, por exemplo, vem de ficatus. E ficatus, de ficus, o nosso “figo”. Tanto na Grécia antiga quanto em Roma, era uma iguaria o fígado de aves forçadas a alimentar-se com grandes quantidades de figo. Em grego, hepar sukoton significa o mesmo que iecur ficatum. Iecur não resultou diretamente em “fígado”, ainda que exista “jecoral”. Mas sua versão grega, hepar, formou algumas palavras da linguagem médica, como “hepático”, “hepatite”, etc. O processo de formação de “fígado”, para nossa língua, é relativamente simples: iecur figatum, ficatum e, finalmente, “fígado”. Encontram-se, em outras línguas, as formas hígado (Espanhol), fégato (Italiano) e figido / foie (Francês).

SEGURA, Luciano Ricardo. “O dito pelo não dito”. Discutindo Língua Portuguesa, São Paulo, n. 5, p. 34-36, jul. 2006.

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