O cuspe autônomo

Pedro de Santi

“Foi Hamlet quem ofendeu Laertes? Hamlet, jamais.

Se Hamlet foi posto fora de si, e com Hamlet fora de si ofendeu a Laertes, não é Hamlet quem ofende, e Hamlet o nega. Quem ofende, então? Sua loucura. E se é assim, Hamlet está na parte ofendida. A loucura também é sua inimiga”. (Hamlet. William Shakespeare. Porto Alegre: L&PM, 1988. Pág. 188. Tradução de Millôr Fernandes).

Lembrei-me desta fala de Hamlet ao ouvir o argumento dado pelo ator José de Abreu para não se arrepender ou se desculpar pela cuspida de deu num casal com quem entrou em discussão. Fortemente associado ao PT, ele é sua mulher teriam sido ofendidos pelo casal, num restaurante.

Cuspir em alguém costuma ser um sinal de nojo e repúdio; uma agressão já física, mas anterior à pancadaria. Talvez, ele sirva exatamente para extravasar raiva sem partir para a briga física. De toda a forma, quem cospe evita o contato com seu alvo, a quem impõe sua saliva. Nada simpático.

A personagem Bob Cuspe, do cartunista Angeli, encarnava nos anos 80 o repúdio Punk pela cultura dominante..

Não há como achar uma cuspida uma coisa boa, mas pode se entender que ela possa ser mesmo uma reação indignada. Parece ter sido assim a cusparada do deputado Jean Wyllys no também deputado Bolsonaro que, além de homofóbico ativista, acabava de votar pelo impeachment da presidente enaltecendo um torturador da época da ditadura.

O que me chamou a atenção na explicação de José de Abreu foi ele não ter assumido ter reagido ofendido, mas sim ter se eximido da responsabilidade por seu ato:

“Não posso me arrepender de um ato impensado”, disse num programa de tv.

O cuspe ganhou assim dimensão subjetiva, como a loucura de Hamlet. Um cuspe autônomo, causa de suas ações, a saltar da boca desavisada de seu emissor involuntário.

Não somos responsáveis por nossos atos impensados? Uma bela brecha está aberta no campo da ética.

Naturalmente, isto não seria digno de nota se não se associasse a enunciados de personagens mais importantes de nossa vida política, como: “não tenho conta no exterior”, de Eduardo Cunha; “eu não sabia”, de Lula, no Mensalão; ou, “mesmo que tenha havido mal feito na campanha ou no governo, a Dilma é honesta e não é responsável”.

Haja auto-indulgência. Ante está incrível facilidade para se eximir da responsabilidade pelos próprios atos, parece ter desaparecido a condição para os sentimentos como culpa ou vergonha. Estes sentimentos são os indicadores de que meus interesses passaram o limite do outro ou da lei, e devem ser contidos. Sem eles, não pode haver arrependimento ou reparação.

Sobre a condição de assumir a responsabilidade pelos próprios atos, evoco outro clássico do teatro: Édipo. Ele é aquele que, tendo descoberto seu destino terrível, lutou para evitá-lo. É também aquele que disse que o assassino do rei Laio seria banido de Tebas. Quando descobriu que o destino se cumprira- havia casado com sua mãe e matado Laio, que não sabia ser seu pai- saiu à frente do palácio e assume a responsabilidade por seus atos, cometidos sem intenção ou consciência. Ele bem que poderia ter dito: “eu não sabia!”; ou, “bem que eu tentei lutar contra o destino, mas eu sou um pobre homem e nunca tive uma chance”. Mas ele não se escondeu, assumindo sua condição de sujeito de um destino que não escolheu, diz algo como: “independente de eu saber, o que fiz e  aconteceu sob meu governo, é minha responsabilidade”.

Mas eram outros tempos.

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