O Boticário no Conar

Pedro de Santi
Debate entre: Fabio Mariano, pesquisador de tendências de consumo; Denise Fabretti, advogada especialista em direitos do consumidor; e Pedro de Santi, psicanalista. Quarta-feira, dia 10 de Junho, às 13:00hs. Local a conferir.

Na semana passada, acompanhamos a polêmica em torno de uma campanha para o dia dos namorados. Ela mostra pessoas se preparando para o jantar especial. Ao final, descobre-se que os pares são do mesmo sexo. Apesar do elemento surpresa desconcertante, a campanha é delicada e assume certa normalidade.

A reação conservadora foi forte, embora tenhamos visto campanhas se aventurarem no campo das questões de gênero de forma bem mais provocativa: como no caso recente do sorvete Magnum, no qual transexuais tomam sorvetes sensualmente.

A princípio, parece ser uma estratégia das marcas para chamar a atenção, mais do que para atingir um público alvo específico. Não penso que as marcas estejam empenhadas em discutir cidadania e defesa das diferenças.

Lembro-me de há quase 20 anos uma campanha de margarina encenando a chegada de um homem à casa dos pais para o almoço de domingo. Até ali, tínhamos a cena mais tradicional do mundo. Mas ele trazia consigo o namorado, que era recebido com naturalidade pela cena familiar. Lembro-me também de um paciente falando desta campanha às lágrimas, no desejo de um dia poder ter aquela experiência. Naquele momento, uma campanha assim era realmente inovadora.

Seguiu-se à veiculação da campanha atual a esperada reação ruidosa de setores mais conservadores religiosos em defesa da família tradicional. Políticos polemizaram para capitalizar com seus eleitores. A reação gerou nova reação, primeiro nas mídias sociais onde surgiram virais para que se curtisse a campanha e vídeos engraçados nos quais homens usavam produtos da marca e passavam a fazer trejeitos gays caricatos. Mas, sobretudo, houve em resposta uma nota bastante sóbria de O Boticário, defendendo “a beleza das relações” em todas as suas ações de comunicação, independente de raça, idade ou gênero. Nada histérico ou ressentido; adequado.

A rigor, este assunto deveria estar socialmente ultrapassado. Já abordamos a questão da perspectiva psicanalítica em outras oportunidades neste espaço, como no debate sobre a malafaia, digo, malfadada “cura gay”. Mas, independente da orientação teórica ou religiosa que se tenha, é um simples fato que a vida sexual humana não seja orientada para e pela repodução e que haja identidades de gênero bastante variadas. Tudo o que podemos esperar é que um dia isto seja visto como é: um fato a ser respeitado e incluído socialmente.

Os ataques a esta realidade são medievais numa sociedade laica; e a defesa que se ergue contra eles costuma ser ressentida e igualmente intolerante. A defesa ostensiva de grupos identitários, quer sejam religiosos, de gênero ou políticos, costumam resultar em “idêntica” violência e negação do outro.

De toda a forma, o assunto viralizado poderia ter se encerrado por aí e estaria tudo certo. Todos com o direito de se expressar. Quem repudia o posicionamento da marca pode boicotá-la e pronto.

Mas algumas coisas fazem com que o assunto se estenda e justifique uma reflexão a mais. No feriado seguinte à esta movimentação, ocorrem duas grandes manifestações já tradicionais na cidade: uma Marcha para Jesus de evangélicos e a Parada Gay (os termos ‘marcha’ e ‘parada’ evidenciam a inspiração militar de ambas as militância). Pergunto-me se a polêmica não foi produzida intencionalmente por esta proximidade, onde há um forte confronto de valores. Há dois anos, a polêmica sobre a cura gay também se deu na proximidade desta data.

Naturalmente, há um contingente de pessoas que frequenta os dois, mas note-se que na Marcha, os gays não seriam aceitos enquanto tais e precisaram se disfarçar; na parada, houve um grupo chamado Jesus marcha contra a homofobia: isto por si só ajuda a pensar sobre semelhanças e diferenças entre os dois eventos.

Outro ponto que impõe a continuidade do interesse do assunto é que a campanha foi parar no Conar e está sob análise (podendo ser veiculada enquanto isto). Ou seja, para além do gosto ou desgosto de alguns com relação à campanha, chega-se a conceber que ela deixe de ser veiculada. Passamos a outro nível de discussão, envolvendo liberdade de expressão e o poder do grupo que ora se sentiu ofendido.

Entidades identitárias se constituem justamente num modelo de inclusão e exclusão. Se cada grupo se sentir no direito de reclamar o silêncio do outro ante o qual se afirma, chegaremos ao perfeito mutismo autista.

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