Médico deve ter poderes judiciais e policiais?

(continuação do Post Loucura e internação compulsória. Algumas sobreposições perigosas)

2. A ambivalência com relação à internação. Um médico passa a ter poderes policiais e judiciais? Ele pode solicitar a internação compulsória (contra a vontade) de alguém e, assim, retirar da pessoa sua condição de cidadão e sujeito.

Passar por internações costuma implicar na perda da condição de alguém ser sujeito de sua vida. É uma questão extremamente complexa saber onde acaba o poder de uma pessoa discriminar sua própria condição de saúde e quando outra pessoa (familiar, medico) passa a ter o direito de solicitar sua internação compulsória contra a sua vontade. É sempre uma situação terrível para todos os envolvidos. O familiar que solicita a internação, ainda que esteja seguro de que seja o certo e cuidando pela integridade do internado, inevitavelmente se sentirá culpado e temerá estar errado. O internado, por sua vez, costuma se considerar sequestrado, traído, desqualificado. Em determinados casos de sofrimento mental, a internação pode vir ao encontro de fantasias de perseguição e exclusão. Além disso, se alguém sofre de modo a perder contato com a realidade externa, não é difícil perceber que ser retirado de seu ambiente e ser internado potencializa muito a perda de realidade.
Quando o internado é alguém sem relação com familiares, à margem dos esquemas de inclusão social, sua internação pode ser vista (com ou sem razão) como “medida de higienização da cidade”, um novo grau de exclusão a serviço de uma noção perigosa de segurança pública.

De toda a forma, reconhecemos o sofrimento e medo daqueles que estão próximos a alguém que sofre de uma doença mental ou dependência química. A situação é tão pesada e contínua que tudo o que se quer é certo descanso: durante a internação, ao menos, pode-se acreditar que a pessoa esteja protegida de riscos e aqueles que vinham sendo responsáveis podem descansar. Mas a saída da internação traz todas as questões anteriores de volta, somadas ao ressentimento e estigma recém adquiridos.

A ferida que se abre numa internação não pode mais ser fechada. Por isto, é importante restringir a internação a situações de risco efetivo de violência contra si e os demais. O preço pago pela internação e alto demais. Depois de duas ou três internações se cria, por assim dizer, uma nova figura patológica: o paciente psiquiátrico. Após anos de internações e uso de medicações psiquiátricas, torna-se difícil discriminar o quanto do comportamento estranho da pessoa se deve ao sofrimento original ou aos efeitos dos tratamentos. Alguém tomado como tendo poucas chances de voltar à vida normal e que perde, assim, amigos, amores, sonhos; que assiste a seus pares segundo suas vidas e se vê ficando para trás; alguém que toma medicações pesadas e as tomará para sempre, com todas as implicações atuais: obesidade, risco de diabetes, etc. E, é claro, alguém com muito medo de ser novamente internado. Muitas vezes, aqueles mesmos que se tornam responsáveis pela pessoa a ameaçam de internação como forma de punição. Um louco diz loucuras, sua palavra passa a não valer ante a daqueles supostamente cuidam dele. A ficção cinematográfica eternizou esta situação em filmes impactantes como Um estranho no ninho (Milos Forman, 1975), Garota. Interrompida (James Mangols, 1999) e, no Brasil Bicho de sete cabeças (Lais Bodansky, 2001).
Com esta exclusão social, a pessoa costuma ficar cada vez mais próxima à família (caso a tenha e nela encontre acolhimento). Mas mesmo o cuidado da família pode acabar por se reverter na criação de um ambiente superprotetor, que mantem uma situação infantilizada. Sem poder entrar aqui em detalhe numa discussão teórica mais aprofundada, para a psicanálise, este fechamento na família acaba por reproduzir e tornar crônicos elementos da própria constituição de muitas formas de sofrimento que podem ter dado início ao tratamento.

3- A loucura em não ser livre e feliz
Retomemos nossa primeira definição de loucura, aquela na qual louco é alguém cujas ações nos pareçam sem sentido. Em nosso ambiente contemporâneo, fortemente influenciado por um humanismo raso- a autoajuda e a disseminação da ideia de que somos livres para sermos o que quisermos- uma figura da loucura é a tristeza, a melancolia. Se compramos a ideia tola de que o gozo está disponível a todos a todo momento, ele passa a ser imperativo. Ser triste é uma falha moral que poderia ser corrigida. É fácil percebermos o quanto uma pessoa deprimida, para além daquilo que a deprime, sente-se culpada por seu estado. Além de triste, ela se vê como fraca e fracassada, incapaz de obter a felicidade como bem de consumo alegadamente acessível a todos.

Outra figura contemporânea de loucura é a variedade de formas de dependência com que nos defrontamos. Dependência de drogas legais ou ilegais, games, redes sociais, relacionamentos, etc. Uma vez mais tendo como referência humanista o valor da autonomia e liberdade, como entender e aceitar que alguém opte por ser dependente? O dependente também é alguém que sofre cumulativamente: por depender de algo, pelo que o faz depender de algo e pela recriminação moral que recebe. O dependente é chamado de viciado e, como sabemos, vício é um conceito de natureza moral, oposto à virtude. Em 2011, escrevi um livro sobre determinadas formas de adição contemporâneas: Desejo e adição nas relações de consumo. (SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de. São Paulo: Editora Zagodoni; 2011).
Outra sobreposição importante com a qual convivemos hoje no campo da loucura é aquela entre o recurso à medicação e os interesses comerciais da indústria farmacêutica. Mas este tópico importante, que tangencia o marketing, merece um texto específico que fica para outro momento.

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