Marketing líquido.

Por Prof. Guilherme Mirage Umeda

A legitimidade social do marketing parece oscilar em vagas. Houve um momento, quando as primeiras teorias mercadológicas começaram a ser discutidas no país, em que a sua importância parecia indiscutível. Nobre atividade profissional, o marketing consistia em um fundamental vetor de desenvolvimento das empresas e, consequentemente, das economias nacionais. Entretanto, uma onda crítica avassaladora que se consolidou durante a década de 80 colocou em dúvida os benefícios que o marketing seria capaz de propiciar à sociedade.
Hoje, observamos situação paradoxal. Os ataques ao marketing se arrefeceram; as defesas retóricas, por seu turno, tornaram-se desimportantes. E as técnicas mercadológicas, longe de caírem no ostracismo, hoje se naturalizam como inexoráveis em tantas dimensões do fazer humano.
A naturalização do discurso mercadológico, evidentemente, tem suas consequências. Talvez, a mais grave seja a ausência de reflexão acerca de quais seriam as fronteiras que o marketing deveria, por prudência, respeitar. Se hoje é difícil conceber a política sem o “marketing político”, a educação apartada do “marketing educacional”, o jornalismo sem o “marketing jornalístico”, não há algo de incômodo na maneira como este marketing, fundamentalmente instrumental, se deve articular com os princípios finais de cada atividade? Pois me parece que quando o marketing tem seu papel social razoavelmente consagrado, dos seus mais difíceis desafios está em ajudar sem atrapalhar.
Mostrei a uma de minhas turmas as primeiras páginas da edição de 1 de outubro de 2012 do Jornal Metro, nas quais as imagens estão ausentes. Fiquei consternado com a falta de cuidado do jornal, de deixar circular uma edição com problema editorial tão sério. Porém, enquanto as fotografava para por em discussão no Facebook (o que costumo fazer quando algo assim digno de nota me chama a atenção), fui advertido por um ex-aluno de que aquilo se tratava de uma ação promocional para o Metro Photo Challenge, concurso de fotografia amadora organizado pelo jornal e patrocinado por Nikon e Colourbox. A explicação do “trote” é revelada na terceira página da mesma edição. Decidi mesmo assim publicar a nota, ainda que por razões inteiramente diferentes.
Meu espanto está na naturalidade com que uma “boa sacada” desvaloriza este espaço tão simbolicamente importante, que é primeira página de um jornal. Ao ceder quase que inteiramente a área mais nobre de conteúdo do produto editorial a uma ação de promoção, o veículo coloca em xeque a seriedade com que ele próprio se vê. Alguns dirão que o conteúdo foi preservado, já que apenas as imagens sofreram interferência. Mas não são as imagens parte fundamental do conteúdo?
Há, no meu entender, um equívoco duplo nesta ação. Por um lado, vacilam os jornalistas (ou editores responsáveis pelo jornal) que colocam à venda o espaço que mais destacadamente representam a sua voz. Por outro, erram os profissionais de marketing e comunicação que não enxergam como o transbordamento publicitário no conteúdo editorial acaba por minar aquilo mesmo o que justifica seus investimentos no produto jornalístico, que é sua credibilidade. É um caso sintomático de certa liquidez do marketing e da comunicação empresarial (para me apoiar na já consagrada metáfora de Bauman), uma tendência de flexibilidade dos seus limites e indefinição de suas formas. Até que ponto esta liquefação está a serviço de uma criatividade produtiva ou excede o desejável, é algo que necessariamente incide no campo ético do exercício profissional do jornalista e do publicitário, e, justamente por essa razão, pede por mais profundas reflexões.

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