Linha, linha de montagem

Pedro de Santi

Neste último dia 1 de maio, acordei me lembrando de uma música chamada “Linha de montagem”. Com a persistência da música em minha cabeça, fui atrás dela na internet (https://www.youtube.com/watch?v=0X8WDZrgyHw). Ela foi gravada pelo grupo vocal MPB-4 em 1980, e composta por Chico Buarque e Novelli. Eu tive o disco de vinil, então.

Só depois da pesquisa e lembrança, dei-me conta de que era Dia do trabalho. Deve ter sido este o fio associativo que trouxe a canção à memória.

Então a sensação mudou. O contraste se impôs entre os Dias do trabalho de então e os de hoje. Parece que estamos em outro planeta, difícil de explicar aos nossos alunos e filhos. Em 1980, estávamos no limiar da ditadura, ainda que faltassem nove anos para a primeira eleição presidencial, em 82 votamos para governador. Os Dias do trabalho eram engajados e combativos.

Como a letra engenhosa do Chico evidencia, na época, algo se anunciava e gestava no ABC. Algo estava em estado de semente e iria se desdobrar. Vejam na letra que anexei ao fim do texto o recurso genial: uma primeira palavra é enunciada e repetida, mas, ao ser repetida, passa a compor uma palavra ou verso maior, que brotava da primeira e desdobrava novos sentidos. Como em “a cor, a coragem” ou “opera operário”.

Do movimento sindical dos metalúrgicos, nascia um partido e uma liderança nova, que se mostrou uma das maiores de nossa história.

Como profetizava a música, o que quer que se visse politicamente no país, passaria por lá. Afinal, deixando de lado a servidão voluntária que mantém a máquina funcionando, certo contingente da população se deu conta de que podia fazê-la parar.

Como fazer o balanço deste período? Sem a competência para fazer a análise política e histórica, fico com a sensação de estranheza de que vivemos não só em outra época, mas em outra dimensão.

A cena do real parece ter mudado das ruas para a internet (cujo uso público completa 20 anos). As manifestações de rua são mornas e a rede arde. Foi lá- e só lá- que a própria presidente se manifestou.

No fim do dia, acompanhei as notícias sobre como foram os eventos do dia. As ruas e eventos estavam meio vazios. Lula- o líder em formação em 80- e Aécio- neto de Tancredo Neves, personagem central do mesmo período- lançavam bravatas diante de pouca gente, como se a disputa entre seus partidos ainda tivesse qualquer importância para a vida real das pessoas ou representasse algo além de seus interesses pessoais.

E nos palcos reais e virtuais quem canta de galo? Aquela outra engrenagem fisiológica e sobrevivente: o PMDB de Calheiros e Cunha.

Ao terminar de escrever este texto, veio para ficar em minha mente outra canção. Vou já ouvir “O que foi feito deverá”, do Milton Nascimento (“O que foi feito, amigo, de tudo o que a gente sonhou. O que foi feito da vida, o que foi feito do amor…”).

Com o perdão do momento saudosista, é bom poder encontrar um alento na memória para reencontrar o fio e o rumo.

Segue abaixo a letra completa de Linha de Montagem:

Linha linha de montagem
A cor a coragem
Cora coração
Abecê abecedário
Ópera operário
Pé no pé no chão

Eu não sei bem o que seja
Mas sei que seja o que será
O que será que será que se veja
Vai passar por lá

Pensa pensa pensamento
Tem sustém sustento
Fé café com pão
Com pão com pão companheiro
Pára paradeiro
Mão irmão irmão

Na mão, o ferro e ferragem
O elo, a montagem do motor
E a gente dessa engrenagente
Dessa engrenagente
Dessa engrenagente
Dessa engrenagente sai maior

As cabeças levantadas
Máquinas paradas
Dia de pescar
Pois quem toca o trem pra frente
Também de repente
Pode o trem parar

Eu não sei bem o que seja
Mas sei que seja o que será
O que será que será que se veja
Vai passar por lá

Gente que conhece e prensa
A brasa da fornalha
O guincho do esmeril
Gente que carrega a tralha
Ai, essa tralha imensa
Chamada Brasil

Samba samba são Bernardo
Sanca são Caetano
Santa santo André
Dia-a-dia diadema
Quando for, me chame
Pra tomar um mé

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