Linguagem, História e Desejo. Ou, porque ler Freud ainda hoje?

Pedro de Santi

A perguntas é boa e, certamente, não possui uma resposta única ou simples. A extensão das obras completas de Freud e a variedade de seus temas e estilos fazem com que, de fato, haja muitos Freuds. Não tantos quantos se queiram, mas muitos. Neste texto, pretendo desenvolver a ideia de que ele é um autor sobretudo necessário para os nossos dias, de uma perspectiva ética.

Temos acompanhado, no século 21, ao crescimento de formas mais concretas e diretivas na forma de lidar com o Homem. Há quem diga que assistimos à morte do sujeito moderno ou, ao menos, do “homem psicológico” nascido no final do século 19. Concepções biologizantes e administrativas, que existem há séculos, tem tomado o lugar das abordagens das ciências humanas. A redução da experiência e comportamento humano à atividade cerebral reduz consideravelmente a atenção à subjetividade e história da pessoa, uma vez que o senso comum toma o cérebro como uma “substância natural”, determinada exclusivamente pela genética. Os avanços da neurociência, aliás, são muito bem vindos. A dificuldade surge quando se procura derivar daquele conhecimento uma “psicologia”: neste momento, algo muito raso e com inspiração de auto-ajuda costuma se impor.

A própria psicanálise, como clínica, vê seu espaço sendo constrangido, quer pelo recurso a tratamentos medicamentosos, quer pela proliferação de métodos alternativos. Certa psicologia positiva se impõe no imaginário social reforçando o pensar positivo como terapêutica para todos os males e tratando a solução do sofrimento humano como uma questão de técnica. Quando se lê este tipo de literatura em seu simplismo e moralismo, voltamos a nos dar conta da complexidade da abordagem freudiana. É justamente neste contexto que pretendo revisitar a psicanálise de Freud, seu sentido e atualidade.

Tomo como referência inicial duas psicanalistas que têm trabalhado especificamente como certo paradigma científico tem se imposto à nossa compreensão do homem contemporâneo e os custos desta imposição.

Em Por que a psicanálise? (1999), Elizabeth Roudinesco, traz um dos temas recorrentes de sua obra. O mundo contemporâneo tem representado a derrota do sujeito. Paradoxalmente, a imposição do discursos científico na compreensão do homem faria parte de um movimento obscurantista, no qual o mundo psicológico e a história do sujeito desaparece sob a tendência de se reduzir a experiência humana à atividade cerebral.

Desde a perspectiva biologizante científica, os tratamentos para toda forma de sofrimento humano passam a ser químicos e medicamentosos, todos os comportamentos passam a ser compreendidos desde uma perspectiva normativa. Com a ênfase dada à biologia ou genética, a atenção à história do sujeito se dilui. Os manuais de psiquiatria multiplicam, a cada edição, a quantidade de transtornos identificados por conjuntos regulares de sintoma, ainda que não se identifique uma causa específica; cada comportamento que desvie do meio da curva normal passa a ser tratado como um distúrbio a ser tratado, com medicamentos. Quando se soma a isto um discurso humanista sobre a liberdade humana, a normalidade passa a ser concebida como a conquista de uma felicidade disponível para todos, e qualquer variedade ou dificuldade em se atingir aquela meta configura um campo de patologia. Diz Roudinesco:

“Embora não curem nenhuma doença mental ou nervosa, elas revolucionaram as representações do psiquismo, fabricando um novo homem, polido e sem humor, esgotado pela evitação de suas paixões, envergonhado por não ser de acordo ao ideal que lhe é proposto” (p. 21).

Assim o projeto moderno de se produzir ciência, ao tomar o homem como objeto de conhecimento como qualquer outro, conforma seu objeto a suas condições de produção, excluindo, com isto, as dimensões propriamente subjetivas: desejo, sofrimento, ideologia, etc. Este resto não é pouco, e grita:

“A morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá por termo a isto, felizmente” (p. 9).

Reencontramo-nos desde já com o modelo com o primeiro modelo freudiano de escuta da histeria: o que é reprimido retorna em ato. E a falta de lugar de representação para nossos afetos e conflitos já se reflete numa grande tônica sintomática do século 21, o recrudescimento da intolerância:

“Há uma concepção da norma e da patologia que repousa num princípio intangível: todo indivíduo tem o direito e, portanto, o dever de não mais manifestar seu sofrimento, de não mais se entusiasmar com o menor ideal que não seja o do pacifismo ou da moral humanitária. Em consequência disto, o ódio ao outro tornou-se sub-reptício, perverso e ainda mais terrível, por assumir a máscara da dedicação à vítima” (p. 16)”

O uso de medicações como panaceia no combate de toda dor psíquica é o sintoma do homem que abdica de sua liberdade e dos preços vitais que ela custa. Ele se poupa mas, no mesmo ato, se priva das angústias do mundo das relações e conflitos. Ao mesmo tempo, sob o domínio dos discursos positivos e politicamente corretos, vivemos concomitantemente cisões sociais violentas: os conflitos sempre existentes afloram com um grau dobrado de intolerância. Este seria justamente o retorno dos impulsos que o discurso da psicologia positiva pretendia aniquilar.

Maria Rita Khel também se dedica a mostrar o quanto a medicalização da vida é, ao invés de um remédio contra a depressão contemporânea, seu sintoma mais característico. Em O tempo e o cão (2011), ela trabalha o quanto a depressão passou a ocupar o lugar de grande sintoma social. E ela diria respeito justamente ao efeito sofrido pelo sujeito que renuncia à sua condição desejante. Diz Khel:

“Do direito à saúde e à alegria passamos à obrigação de ser felizes (…). A tristeza é vista como uma deformidade, um defeito moral, ‘cuja redução química é confiada ao médico ou ao psi’ . Ao patologizar a tristeza, perde-se um importante saber sobre a dor de viver. Aos que sofreram o abalo de uma morte importante, de uma doença, de um acidente grave, a medicalização da tristeza ou do luto rouba do sujeito o tempo necessário para superar o abalo e construir novas referências, e até mesmo outras normas de vida, mais compatíveis com a perda ou com a eventual incapacitação (p. 31).

Aqui não se trata, portanto, do combate ou da fuga da depressão, mas de sua produção. Este é o ponto estratégico no qual o discurso e a clínica psicanalíticos mostram sua relevância.

Caminhar com as psicanalistas Roudinesco e Khel nos proporciona uma resposta sobre por que ler Freud hoje. Um autor que nos ajuda a emergir do pensamento dominante o nos permite perceber a dimensão obscurantista e mortífera sob os discursos científicos e positivos atuais não é pouca coisa. Com isto, mostram que dois dos mais severos sintomas contemporâneos- a depressão e o ódio intolerante de grupos identitários- seriam produzidos justamente pela imposição de uma norma que ignora a história e as dimensões não objetiváveis da experiência humana.

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