Imagens da organização e das pessoas

Pedro de Santi

Com as mudanças no campo político que o Brasil tem experimentado recentemente, temos tido a oportunidade de assistir uma batalha mental. Aqueles que estão hoje no poder afirmam suas concepções de mundo e versões da história, contrapondo-se fortemente às concepções e versões que eram moeda corrente há pouco.

Isto tem consequências diretas nos mais diversos campos, como na educação e posicionamento do país internacionalmente. Sem entrar no mérito do valor das visões de mundo em questão, chamo a atenção para o privilégio de presenciarmos este ponto de inflexão: nele, assistimos em velocidade espantosa os próprios conceitos de verdade, fato, história serem postos em questão. Pode-se querer acreditar que uma história verdadeira está sendo trocada por uma falsa- ou o contrário- mas também se pode perceber que o passado é contado, recontado e ressignificado a cada novo presente, dentro da composição de um jogo de forças. Os livros de história que educam as crianças nas escolas são o ponto final deste processo.

Uma alucinação vivida individualmente é só uma alucinação. Mas se ela for gerada, gestada e compartilhada por um grupo (de Whatsapp, por exemplo) relativamente fechado e sem compromisso de interlocução com outros grupos, ela proliferará e procurará se impor como realidade. Fakenews também são cultura, como uma de bactérias. Nosso ambiente conectado possui hoje condições de um feudalismo virtual a gestar realidades autônomas.

Reevoco aqui uma obra muito instrutiva para a compreensão deste mecanismo. Em “As imagens da organização” (São Paulo: Editora Atlas, [1998] 2006), Gareth Morgan faz um trabalho de levantamento das principais metáforas utilizadas para se referir às organizações. Nas metáforas, mais do que um imaginário, Morgan encontra um paradigma que formata pensamentos e ações na vida real. Trata-se algo próximo à expressão“o meio é a mensagem”criada por pelo filósofo Marshall McLuhan, em seus estudos sobre Comunicação.

Pensar uma organização como organismo, máquina ou cultura (entre outras formas estudadas por Morgan) implica e cria uma mentalidade e forma de lidar com processos e pessoas.

A primeira metáfora trabalhada na obra, não por acaso, é aquela que pensa a organização como uma máquina. Esta seria a mais comum e difundida, derivando das origens da organização no modelo de um exército coeso, passando pela modernidade cartesiana e sociedades burocráticas. Ainda hoje, a concepção da organização como máquina a funcionar com o ajuste, controle e monitoramento de cada parte tomada como peça- o que inclui os trabalhadores- é o paradigma da ordem, eficiência e desumanização das relações. Além de operar internamente como uma máquina, a organização assim concebida modela as sociedades em que se encontra, instituindo como valores a disciplina, o sucesso, o enriquecimento, a transformação de todas as relações em relação de consumo utilitário.

Mas o custo desta concepção é evidente. Diz Morgan:
“Toda a crença básica da teoria da administração clássica e a sua aplicação moderna é sugerir que as organizações podem ou devem ser sistemas racionais que operam de maneira tão eficiente quanto possível. Enquanto muitos endossaram isso como um ideal, é mais fácil dizer do que fazer, pois estamos lidando com pessoas e não engrenagens e rodas inanimadas. A esse respeito, torna-se significativo que os teóricos clássicos tenham dado relativamente pouca atenção aos aspectos humanos da organização” (p. 40).

A percepção dos impasses desta visão trouxe a necessidade criar outras. Desde a perspectiva da administração científica e do controle, passou-se a buscar controle sobre a cultura corporativa, a través de estratégias de recursos humanos. Mas também houve quem visse nos impasses da visão da “máquina” uma forma mais complexa de conceber as relações de trabalha, assim como as relações da organização com o contexto cultural e social mais amplo.

Voltando às considerações iniciais sobre o período que vivemos, as escolhas das imagens às quais recorremos para pensar são mais do que figuras de linguagem: elas expõem concepções de mundo anteriores e são formas de procurar formatar mentalidades. São formas de exercício de poder que alguns chamariam de soft power, mas entenda-se que soft neste contexto significa apenas que se consegue o controle do grupo não pela violência explicita, mas pela conquista da adesão dos subordinados. Com esta incorporação, alguém pode apontar o dedo para a ideologia dos outros e não se dar conta da sua, que lhe parece ser a realidade em si.

Qual a diferença entre usar expressões como “recursos humanos”ou “gestão de pessoas”? Ou, qual a diferença entre produzir uma psicologia que vê um sujeito como ser social em conflitos internos e externos ou uma que busque seu paradigma na biologia cerebral, ou ainda uma que pense numa pessoa como uma empresa a ser gerenciada? O meio é a mensagem.

Depois de apresentar suas diversas metáforas, Morgan desenvolve uma tese bastante interessante: não se trata de escolher qual seria aquela mais adequada para representar e configurar as organizações, mas de perceber que elas são organizações multifacetadas. Isto implica em que seja necessário pensar sempre desde diversas perspectivas, deve-se explorar várias metáforas em busca do que cada uma delas oferece, assim como a soma do que elas trariam à luz.

Este convite ao perspectivismo parece valido para todas as áreas e já é, sobretudo, uma garantia contra a adesão cega a uma visão de mundo, que pretenda se impor de modo fanático.

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