GLOSSÁRIO FREUD III. Associação livre e transferência

Pedro de Santi

Freud foi um autor de grande inventividade teórica. Ele criava conceitos constantemente e, da mesma forma, ressignificava os conceitos já criados. Este é um limite a um glossário que se pretendesse totalizante. Aqui, procuramos apenas dar algumas orientações de sentido e história de alguns dos conceitos fundamentais. A partir deles, destaco em negrito outros conceitos a serem explorados e indico ao final de cada verbete alguns textos de Freud de interesse específico sobre cada conceito. O convite é, portanto, que a partir destas portas de entrada, o leitor ingresse numa leitura própria e sistemática da obra de Freud.

Associação livre (Freie Assoziation)
A regra fundamental da clínica psicanalítica. O analisando é convidado a dizer tudo o que lhe venha à mente, sem compromisso com continuidade, coerência, sem desprezar ocorrências que lhe pareçam banais ou inadequadas. A ideia é que o fluxo associativo seja livre de inibições. O sentido da técnica atende a diversas finalidades: as associações são formas de expressão subjetiva e, ao mesmo tempo, capturadas pelos complexos inconsciente, o que se evidencia por lapsos e repetições. Além disso, o convite a suspender as inibições é irrealizável, no limite. Ainda que o analisando diga coisas que nunca disse antes e avance sobre suas resistências, movido pela força transferencial, as associações verbais acabarão por ser detidas em pontos de forte resistência: isto mapeia o campo das resistências e delimita o campo do representável, naquele momento, pelo analisando. Este ponto limite da palavra pode levar a expressão dos mesmos conteúdos através de atuações transferenciais.
A técnica da associação livre por parte do analisando tem como contrapartida do analista a regra da atenção flutuante (atenção igualmente flutuante, Gleichschuwebende Aufmerksamkeit), que consiste em manter a escuta analítica aberta às expressões do inconsciente, sem de deixar seduzir pela superfície dos assuntos trazidos ou privilegiar determinados temas sobre outros. A rigor, estas são as duas regras fundamentais que definem uma relação como analítica. Outros elementos, como o uso do divã ou a frequência das sessões, podem contribuir para o trabalho, mas não o definem: Freud indica que outras regras que ele próprio obedece são instrumentos afeitos à sua mão, mas que é concebível que outros profissionais e contextos possam recorrer a outros.
A associação livre é ainda ligada, na história da psicanálise, à evolução da teoria e da técnica. Suas antecessoras foram a hipnose e a técnica sugestiva (pressão na testa), coerentes com um concepção de que o analisando sofre por memórias específicas a serem encontradas e ab-reagidas. Ao passar a conceber o psiquismo como basicamente inconsciente, e a consciência como uma superfície de contato com o mundo externo, deixou de ser preciso procurar pelo inconsciente e passou-se a buscar escuta-lo nas diversas formas de expressão subjetiva.
Psicológica e eticamente, a associação livre opõe-se ao foco da atenção: não se trata de investir no auto-controle de um Eu compreendido como como centro racional da personalidade, mas sim na distração, como forma de evidenciar a direção dos desejos inconscientes que nos movem. Em outros termos, a psicanálise considera que a busca por autocontrole é um caminho que especificamente afasta do auto-conhecimento.
Ler: Análise fragmentária de uma histeria (1905), O início do tratamento (1912), Conselhos ao médico no tratamento analítico (1912).

Transferência (Übertragung)
Conceito fundamental da clínica psicanalítica. Desde que a psicanálise se define como psicoterapia, a relação entre analista e analisando é percebida como o próprio ambiente no qual se dá o tratamento. Freud parte do trabalho com pacientes histéricos, conhecidos desde
Hipócrates. Ele se dá conta de que há um jogo entre a demanda histérica e a utilização da sugestão por parte da medicina: ante a reclamação histérica, a atitude complementar do medico sempre fora se apresentar como aquele capaz de dar conta daquele sofrimento. Mas a instsfação histérica sempre persistia, como enigma e frustração para aquele que tentava cura-la. Ele passa então a compreender que o analisando transfere sobre o analista afetos e fantasias relativos às suas relações mais primitivas, demandando, de forma geral, amor e cura. Da mesma forma, ele se dá conta de que a sugestão se apoia sobre a transferência e nisto reside sua possibilidade de sucesso imediato e fracasso ao longo do tempo. A transferência passa então a ser compreendida como a ligação que sustenta o analisando à análise e como algo a ser interpretado, não a ser satisfeito ou complementado. Simetricamente, o fim da transferência leva ao fim do tratamento.
Psicologicamente, a transferência implica num deslocamento e projeção de um afeto ou fantasia de uma pessoa a outra, o que configura a repetição de padrões de relação. A rigor, todas as relações pessoais passam por processos assim. Ao discutir a diferença entre o amor e o amor de transferência, Freud diz que, na realidade, não há diferença. Para alguns autores, reserva-se ao encontro analítico a denominação de ‘transferência’ para este processo projetivo.
Freud considera que lidar com a transferência é a parte mais difícil do tratamento. Inicialmente vista exclusivamente em sua dimensão de resistência, passa a ser vista, por volta de 1900, como uma forma de presentificar na sessão analítica o modo como o analisando estabelece suas relações afetivas. Por volta de 1900, o tratamento era centrado na descoberta dos desejos inconscientes, a partir da interpretação das formas de retorno do reprimido. Ao longo de décadas de clínica, Freud passa a considerar que o que pode ser obtido por este caminho é sempre fragmentado e insuficiente; progressivamente, a transferência passa a ocupar um lugar mais importante na reconstrução do infantil. O que resulta da análise da transferência dá liga aos fragmentos de fantasia/memória e é nela que se dá o enfrentamento às resistências.
O correlato da transferência no analista é a contra-transferência, vista por Freud como um empecilho à escuta analítica. A história posterior da psicanálise interpretou de formas muito variadas esta relação. De toda a maneita, a clínica freudiana parte da análise de conteúdos para a análise da própria relação analítica.
Ler: A dinâmica da transferência (1912); Recordar, repetir, elaborar (1913); Construções em análise (1938).

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