Gilbert Durand, mestre do imaginário (1921-2012)

Por Guilherme Mirage Umeda

É um tanto irônico que em um mundo assolado pelo domínio audiovisual e que se autointitula, com certo orgulho, de “sociedade da imagem”, tenha se gerado tão pouca repercussão sobre a morte de um dos mais influentes teóricos do imaginário. Gilbert Durand, pensador erudito e versátil, lega-nos uma obra monumental que consolida os esforços de tantos outros intelectuais (dentre eles, seus companheiros no quase mítico Círculo de Eranos, incluindo Carl Gustav Jung, Mircea Eliade, Henry Corbin, Joseph Campbell e Andrés Ortiz-Osés) na reabilitação da imagem frente à desconfiança com que o racionalismo iconoclasta a encarava.
Enquanto a filosofia, a antropologia e até o senso comum atribuíam à imaginação epítetos como “férias da razão”, “pecado contra o espírito”, “infância da consciência” ou “louca da casa”, Durand buscava redimi-la como elemento-chave na compreensão da psique humana em sua complexidade e em suas possibilidades de abertura interpretativa. O “adultocentrismo” que conduz o ser humano à racionalização não representa uma evolução inequívoca do pensar, mas pode ser revelador de um estreitamento do belo sentido das metáforas proliferadas no pensamento infantil e que nunca abandona por completo o homem maduro. Em minha lembrança – que de modo bachelardiano às vezes imagina –, Manoel de Barros conta a expressão de uma criança sobre a borboleta: “olha as cores se avoando!” A carga semântica de imagens como essa, tão prenhes de sentido, corroboram a noção de Gaston Bachelard, não por acaso mestre de Durand, de que todo excesso de infância seja o germe de um poema.
Afastando-se da psicanálise de cunho freudiano e aproximando-se de Piaget, Durand descarta as teorias que atribuem à repressão das pulsões inconscientes as fontes da imaginação, como se o conteúdo onírico estivesse em constante fuga envergonhada da censura do ego. Considerar o imaginário em sua positividade, naquilo o que cria de mundos em lugar daqueles que esconde: eis o projeto durandiano. E nenhum método pode dar conta de tal projeto senão o mergulho sincero e aberto no mar de imagens que vibram no trajeto humano: “Para poder ‘viver diretamente as imagens’, é ainda necessário que a imaginação seja suficientemente humilde para se dignar encher de imagens”.
Não viveríamos, assim, um momento histórico privilegiado, este no qual a explosão informacional nos coloca diariamente em contato, em todo lugar e a todo tempo, com um sem número de imagens? É o próprio Durand que em seu opúsculo “O Imaginário” nos fornece uma resposta possível: todo o valor da imagem está no julgamento de valor de quem o interpreta. A recepção de imagens enlatadas, como as geradas em sistemas gerativos de tão vigorosa produtividade, tende a criar espectadores paralisados, cuja voracidade no consumo das imagens não é acompanhada pelo apetite de delas se sorver. “Olhar de peixe morto”… E se, por um lado, o silêncio sobre sua morte faz-nos lamentar a injustiça, por outro, pode ser mesmo indicativo da acurácia de seu próprio diagnóstico de nossos tempos.
Agora, que a inelutável presença de Cronos aborda o grande mestre, que a face do tempo é o escuro da morte, ressentimos a ausência dessa voz que tão bem representou o gênio humano. Caminham hoje, obra e homem, seus próprios percursos: obra, pela transcendência heroica, como um gládio que empunhamos na procura por um antídoto do tempo; homem, pela “segura e quente intimidade da substância”…

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