Freud com os escritores

Pedro de Santi

Nos anos 80, houve uma onda de interesse pela psicanálise, expresso entre outras coisas por uma grande produção editorial.

Títulos com o formato “Freud e…” se multiplicaram nas prateleiras das livrarias. Paul Laurent-Assoum foi responsável sozinho por Freud e Nieztsche, Freud e Shopenhauer, Freud e a mulher, entre outros; de Bruno Bettelheim, foi lançado o belo Freud e a alma humana. No Brasil tivemos uma produção de altíssimo nível: como Freud e o inconsciente, de Luiz Alfredo Garcia-Roza; Freud. Pensador da cultura e Freud. A trama dos conceitos, de Renato Mezan; ou ainda Freud. O movimento de um pensamento, do filósofo Luiz Roberto Monzani.

Num contexto atual de refluxo daquele interesse editorial, é publicado agora no Brasil Freud com os escritores, com a co-autoria de Jean-Betrand Pontalis, e Edmundo Gómes Mango, de 2012. Falecido no ano passado, Pontalis é célebre por outra parceria, aquela que formou com Jean Laplanche em 1967, quando publicaram o Vocabulário da psicanálise, livro de cabeceira de todo estudante da área. Por conta disto, “Laplanche e Pontalis” soam como uma marca, um nome próprio.

Por caminhos diversos, ambos tiveram uma extensa produção original ao longo de suas vidas. Laplanche procurou resgatar o papel da sexualidade, que acreditava ter sido recalcado pela própria psicanálise; ele também operou uma hexegese da obra freudiana à procura de uma leitura literal. Por isto, foi o responsável por uma tradução das obras Freud do alemão para o francês “palavra a palavra”, instrumento precioso para um pesquisador acadêmico, mas de estilo penoso e germanizado para um analista ou um leitor de outras áreas. Pontalis conduziu sua produção de forma mais poética e dirigida à clínica. Sua escrita e pensamento procuram a produção de efeitos de sentido mais polifônicas.

Isto serve como contexto para o livro de que tratamos. O livro investiga as relações entre Freud e os escritores a quem se refere ou com quem teve uma interlocução. A intenção é evidenciar a presença intrínseca da criação literária na psicanálise. Mais que um assunto ou objeto de análise, ela possui uma relação estreita com a experiência analítica e seria a própria matéria da qual é feita a elaboração teórica.

No livro, há pequenos capítulos sobre a relação específica de Freud com autores “fonte”, como Shakespeare; autores que provocam a angústia e o fascínio do “duplo”, como Nietzsche e Schnitzler; e aqueles que tomaram Freud como objeto de sua escrita, como Thomas Mann. Uma ausência gritante é a de Sófocles: como pode o autor de Édipo Rei ter ficado de fora? Cada capítulo foi escrito integralmente por um dos autores, identificado ao seu final. E o livro tem o mérito de não deixar isto transparecer imediatamente. Há certo equilíbrio de estilo e nível de profundidade de análise. A leitura é leve e agradável, e pode ser feita linearmente ou focada em autores de interesse do leitor.

O tema central do livro é o lugar do Dichter, o poeta. Ele encarna aquela figura que Freud admira tanto, por sua capacidade de apreender imediatamente e de forma artística aquilo que o investigador (o Forsher) se esforça brutalmente por alcançar. Mas as relações entre o poeta e o investigador não são apenas de oposição. É inegável que o trabalho do teorizar, tão caro a Freud, alimenta-se da mesma fonte que a do poeta: a fantasia. Quantos conceitos e modelos eurísticos criou Freud? A quantos estilos de escrita recorreu ao longo de sua obra? Um Freud poeta emerge, para certo constrangimento do Freud investigador, aspirante ao reconhecimento pelo meio científico.

A produção da fantasia, criação de símbolos e jogos de linguagem remetem ao apreço de Freud pelo Witz, o chiste, investigado no livro a partir de sua teorização por autores românticos. A capacidade de jogar com as palavras é dada àqueles que não esperam dela significados fixos e unívocos. Há algo de melancólico no uso da ironia. E aquele que inaugurou a psicanálise com um livro sobre a intepretação polissêmica dos sonhos está implicado nesta experiência.

E foi a Freud, intérprete de sonhos como o jovem José bíblico, que o grande romancista alemão Thomas Mann dedicou sua trilogia José e seus irmãos. Talvez o momento mais tocante de Freud com seus escritores seja aquele que retoma a cena de 14 de junho de 1936. Thomas Mann foi ao encontro de Freud, de saúde já debilitada, e leu para ele e sua família um ensaio que fez em homenagem aos seus 80 anos. O apreço entre a literatura e a psicanálise é recíproco, afinal.

No início desta resenha, referi-me a Luiz Alfredo Garcia-Roza como um dos autores brasileiros de obras importantes sobre Freud. Pois ele se tornou também autor de uma série de romances policiais de sucesso; o poeta e o investigador se encontraram, afinal. Talvez ele tenha realizado um dos sonhos de Freud.

Freud com os escritores Pontalis, J.-B.. e Mango, E. G.. São Paulo: Três estrelas, 2014. 303 páginas.

Comentários estão desabilitados para essa publicação